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29 de fevereiro de 2004
A HIERARQUIA DOS GESTOS
Na literatura, o movimento do corpo é descrito e imaginado. No cinema e na TV, o gesto explícito é a vitrine dos nossos erros, já que os acertos não dependem do desenho feito pelo andar, linhas do rosto e trejeitos: a sinceridade vira pelo avesso a máxima de que somos o que parecemos. Somos o que somos quando não queremos parecer alguma coisa – nesse caso, o gesto faz parte do nosso encanto. Quando fingimos – forçamos os gestos – nos transformamos num conjunto de posturas artificiais. O mais trágico é quando os gestos denunciam a posição social que cada um ocupa na pirâmide das exclusões.
LITTLE BROTHER - O programa da Globo, Big Brother, é uma pequena loja de horrores. Um grupo é escolhido para exibir uma sucessão de gestos didáticos, que ensinam as pessoas a gozar a vida e a não trabalhar. Eles se deitam, se agridem e se fuzilam: toda hora tem “paredão”. É como se fossem ratos de laboratório, a provar a pesquisa científica dos idealizadores desse pesadelo, de que brasileiro é mesmo vagabundo, gosta de mordomia, odeia o próximo e só quer se dar bem na vida. Esse conjunto de conceitos é reforçado pelas cenas doentias, todas elas ostentando um falso improviso, quando está na cara que foram escritas, tanto é que tem personagem que não consegue dizer a fala direito (como no caso das crianças nos comerciais com aquela voz forçada, pois a meninada não está em condições de articular toda a complexidade e oportunismo da mensagem, o que inclui estrutura de frase, entonação etc). Costuma-se dizer que o povo gosta mesmo disso tudo, pois o Ibope (quá!) está alto. Me coloquem em horário nobre falando abobrinhas numa rede poderosa que terei Ibope alto. É tudo uma questão de oportunidade e horário. Sempre tenho a impressão que os programadores esperam dar traço na pesquisa (lá pela uma da manhã) para então colocar um belo documentário (como Roger and me, de Michael Moore, que passou na madruga do SBT) ou algum clássico (como acontece uma vez por semana na Bandeirantes, que ainda tem a manha de corromper a obra retaliando-a em blocos onde os intervalos são preenchidos com mídia interna, propaganda exaustivamente repetida sobre as outras atrações da rede). O público não tem opção, tem porcarias na hora em que tenta ver alguma coisa – e ainda é chamado jocosamente de “ô da poltrona” ou “você aí do sofá, que fica parado”. A malandragem costuma se deitar quando tem algum trabalhador pela frente. Principalmente quando está no poder.
OMBROS, CARAS E BOCAS – O entusiasmo de estar diante das câmaras falando qualquer coisa costuma deixar marcas, como o frenético sacudir de ombros, quando há a intenção de reforçar o que está sendo dito (normalmente um conjunto de redundâncias ou de informações plantadas). É o recado claro do exibicionismo, falta de assunto e desimportância da reportagem. Outro gesto é o leve inclinar para a frente, que acontece no final das frases do atual jornalismo de breque - aquele que também faz uma paradinha no meio frase para fazer suspense ou preparar o pobre do telespectador para a emissão do crédito. Acho até que, para os repórteres de TV (de todo o mundo) o mais importante é dizer o próprio nome. Não importa a informação, o que vale é “Fulano de Tal, de Caixa Prego". O recado também é claro: “Eu sou o maior, o mais importante. Dane-se a reportagem. Você aí da poltrona, admire-me.” Pois o mundo, caro leitor (você e eu) existe para admirá-los. E cuidado, senão você toma o lugar daquelas criaturas que vivem alcançando coisas ou aturando quem está hierarquicamente acima. O cara que alcança a toalhinha para o campeão de tênis, o lavrador que fica virando a forragem enquanto o repórter, de microfone na mão, explica como a coisa funciona, sem falar na plêiade de empregadas nas novelas, todas uniformizadas e aturando desaforo das starlets. Isso chama-se reiteração permanente dos papéis sociais.
O CORPO TODO – O gesto favorito dos nossos estadistas de estádio (como diria Ulysses Guimarães) é virar a cabeça junto com o tronco. Sinal que sugere integridade física, ou seja, não se torce o pescoço para olhar ninguém, vira-se inteiramente como a proclamar autoridade e expressar com esse gesto que se está ali para mandar e ensinar, e jamais para escutar. Nisso FHC e Lula também se parecem. A rigidez de ombros que ostentam significa que são rochedos. Em volta deles, pululam como ondas os ombros frenéticos da mídia, a lamber-lhes as ostras.
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