8 de janeiro de 2017

SIMILAR – IDENTIFICAÇÃO NA GUERRA FRIA



Nei Duclós

Em A Ponte dos Espiões, Spielberg aprofunda seu resgate dos princípios fundadores da civilização e da democracia

Todos são iguais perante a lei, mas não perante o cinema. Steve Spielberg, na sua missão de atualizar os princípios fundamentais da democracia americana, ainda cai na tentação de colocar o Outro Lado – russos, alemães, árabes – no lugar comum do cenário infernal e sinistro de ruas caóticas e prisões insuportáveis. Isso é que o mantém no conservadorismo, apesar do seu trabalho eficiente de opor a individualidade consciente e apoiada na Constituição às instituições pervertidas pelos interesses.

No filme Ponte dos Espiões (2016), Spielberg se debruça sobre a natureza similar dos indivíduos fieis à pátria, desde que essa fidelidade exija comprometimento com a ética, mesmo sob o clima pesado da guerra. E que não representam governos e nem apenas a si mesmos, mas a esse vetor ético fundador de nações.

Os dois personagens principais são encarnados com profunda competência (cool, minimalista, densa, focada) por Tom Hanks e Mark Rylence. Tom é Donovan, o advogado de seguros convocado para defender o espião russo Abel, nascido inglês. Uma defesa para livrar a cara da isonomia da justiça dos Estados Unidos, mas que no fundo ninguém torce pela absolvição, ao contrário. Rylence é o ganhador de Oscar de 2016 por esse papel (depois de ter surrado o mundo com sua magnífica interpretação de Thomas Morus na série Wolf Hall). Ambos se identificam na persistência às suas metas, sem abrir a guarda para as pressões institucionais. Estão sob suspeita e isso os aproxima, como a dizer que todos estão no mesmo barco e a guerra fria é um estagio obsoleto numa geopolítica que precisa mudar de estratégia para haver paz e sobrevivência da espécie.

A situação similar fica evidente em duas cenas idênticas. Em Berlim, Donovan vê da janela do trem que cruza a fronteira os jovens tentando pular o muro e serem metralhados por essa tentativa. Em Nova York, também num trem, ele vê com preocupação a mesma situação de garotos pulando as cercas internas dos bairros, numa citação explícita da obra prima West Side Story, que nos remete às guerras internas de gangues. Tudo muito atual: a substituição da guerra fria pela guerra generalizada e o perigo de voltarmos ao mesmo ponto de conflagração anterior. No filme, o esforço individual é reconhecido como promotor da paz, mas ao mesmo tempo, visto hoje, é mais uma batalha perdida da civilização possível.

Quando o espião Abel é libertado, diz para Donovan que pintou um quadro, que é o rosto do novo amigo. São as identidades similares que criam vínculos em momentos limite. A única saída é a persistência e a coragem. Spielberg só precisa abandonar a visão aterradora dos cenários do Outro. Reconhecer a humanidade do inimigo é um passo importante. Falta dar o passo do cinema. Não que vá pintar um quadro bonito de Berlim Oriental ou dos nazistas, mas precisa dar o mesmo peso e a mesma medida no que mostra em sua obra fundamental do cinema contemporâneo. Se há poucos gênios em atividade no mundo, Spielberg é um deles.


2 comentários:

  1. Anônimo11:59 AM

    Poeta:
    em linhas essenciais, concordo contigo. Especialmente, quanto á genialidade de Spielberg
    (marco túlio de rose)

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