Nei Duclós
Criticar não é faltar com o respeito, é colocar em dúvida o
que é hegemônico fundado na tradição. Há a crítica desrespeitosa, mas isso não
faz parte da análise e sim do impropério, do xingamento, da briga ideológica, da
disputa de cargos, da necessidade de mostrar força. O que nos interessa é a
abordagem isenta e racional, sem que esses conceitos sejam manipulados sob a
ótica do fundamentalismo. O pesadelo da razão não deve se impor a uma crítica,
que para ser boa não precisa ser obrigatoriamente construtiva.
Precisamos começar definindo o que é tradição, sem invocar o
vasto acervo que cerca essa palavra. A produção do pensamento não é fast food,
mas nem sempre prescinde da velocidade ou do conforto de manobrar na
superfície. A tradição é o que sobrevive apesar dos embates da transgressão em
sucessivas gerações. As vidas, quando chegam na fase terminal, costumam
recarregar os conceitos tradicionais porque é deles que precisam para continuar
em frente. A ultrapassagem, a ruptura, por não construírem uma tradição, já que
existem a partir da oposição à herança, acabam sucumbindo ao poder maior do que
já está estabelecido há tempos. O revolucionário migra para o conservadorismo,
mesmo quem optou pelo marxismo, que, como todas as outras culturas, conseguiu
formar um escopo de granítica preservação.
Opor-se ao marxismo é complicado, pois os fundamentos da
teoria atingem duramente e de maneira clara a trajetória da civilização. Ele
perdeu a forma ao transbordar para o socialismo (que lhe precedia), o
reformismo, a aceitação pelo cânone. Foi desmoralizado com a “paz americana” a
partir da queda do muro de Berlim, mas se mantém, apesar de os partidos
marxistas terem mudado de nomenclatura (nem todos, no Brasil ainda se usa a
palavra comunista, à esquerda e à direita). É possível criticar de maneira
competente o espírito revolucionário que mantém as mesmas certezas das suas
origens nos séculos 18 e 19, mas não a performance teórica e filosófica que
impregnou as ciências humanas. Pode-se discordar da luta de classes como
presença permanente e hegemônica na História humana, mas não a influência da
vida prática na formação dos conceitos, o poder da infraestrutura sobre a
superestrutura, mesmo quando isso não obedece ao fundamentalismo do
materialismo dialético.
O fato é que se anda em círculos quando se fala em opções
políticas e religiosas. O catolicismo deu uma guinada importante com João 23
mas recuou até achar um equilíbrio com João Paulo II e hoje passa por crise de
credibilidade com o Papa que pretende ser capa da mídia todos os dias (isso
depois da experiência de Bento XVI, um teólogo tradicional que não segurou as
pontas soltas da sua religião). Jovens judeus revolucionários, por mais bem humorados
que sejam, acabam se rendendo ao cânone ortodoxo, e é isso que mantém a cola
que gruda o estado israelense, pois sem a tradição não haveria chances de o
Estado se manter em território conflagrado. O movimento negro perdeu seus
grandes lideres dos anos 1960 e uma parcela dele, na América, ascendeu
socialmente, mas está vivo no varejo, batendo forte em cada evento formatado
pelo preconceito. As mudanças não influem radicalmente na postura, já que a
repressão continua firme.
No Brasil a confusão instalou-se a partir do momento em que
a esquerda atinge o poder e esbagaça o patrimônio da nação, sob o álibi que era
um acervo amealhado em séculos de exploração. Não se atentou ao fato de que um
país é feito pelo seu povo, por mais submisso que seja, e destruir o que foi
construído via corrupção ou abertura completa à invasão estrangeira tira o
principal da existência da nação, pois o Brasil foi feito para abrigar os
brasileiros, ou então não teria sentido.
Os conservadores se perderam no liberalismo globalizante e
hoje tentam demonizar os adversários que lhe impuseram humilhante derrota via
urnas eletrônicas suspeitas. Não se pode lutar para restaurar uma ditadura sob
pena de desmoralizar a indignação. Assim como não se pode deixar passar em branco
o volume de denúncias sobre a roubalheira geral patrocinada pelos novos donos
do poder.
Trinta anos do novo regime dito democrático criou uma
tradição de incompetência e desvirtuamento das instituições. Busca-se
desesperadamente a volta da credibilidade para que a nação permaneça em pé.
Nesse processo vale tudo, até esquecer os pecados da farda, que foi erradicada
do poder pelo seu complemento civil dos anos de chumbo. Podemos exercer a
crítica sem cair na tentação de definir o inimigo para podermos assumir uma
identidade. Nosso inimigo não é a República nem a democracia ou a esquerda.
Nosso inimigo é difuso, navega entre a imoralidade vigente e a necessidade de
mudança. Tenta-se cristalizar o adversário por meio de bonecos infláveis
gigantes, mas toda forma de ação sem um foco definido acaba se esvaziando – à força
ou não.
O que falta é a crítica fora das paixões, reunir o pensamento
racional não fundamentalista, produzir pensamento para o futuro. Ou seremos
devorados, como os sírios, os curdos ou os palestinos. Hoje a barbárie toma
conta do país por meio de mais de 50 mil assassinatos por ano, das chacinas
promovidas por gangs de adolescentes, da manipulação da cena do crime por parte
de policiais, das decisões judiciais suspeitas e da recessão, em que finalmente
a marolinha mostrou a caratonha. Criticar requer competência, aprofundamento e
uso lúcido das mídias disponíveis. E denunciar a pregação da brutalidade pura e
simples, como a ideia de que é preciso paredão, bala, pá e cova para os
adversários, em vez de debate e Justiça.
RETORNO - Imagem DESTA EDIÇÃO: Gerard Depardieu em Germinal, de Claude Berri, 1993,
sobre obra de Emile Zola.
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