17 de dezembro de 2013

CHUVAS DE VERÃO: O FILME PERFEITO



Nei Duclós

“Chuvas de Verão” (1977), de Cacá Diegues, continua sendo uma obra-prima do cinema nacional. Em cada cena de clássico acabamento, numa trama de grande complexidade e transparência, vemos neste filme maravilhoso quem realmente somos e aprendemos a admirar nossa capacidade de alcançar o mais alto nível da criação cultural. Com essa revelação, resgatamos o país mergulhado dentro de nós. Fica assim mais fácil suportar e entender a carga de realidade que nos desafia e que costumamos ignorar.

MILAGRE – Ao filmar o Rio de Janeiro e deixar de lado a Zona Sul, Cacá Diegues captou o milagre da civilização brasileira, que se estende por vasto território com as mesmas características (“milagre de português”, segundo Paulo Vanzolini). O aposentado que sonha em nada fazer descobre nos vizinhos, amigos e parentes a sombra pesada de uma vida em todos mal resolvida, e por isso mesmo, humana. O admirável é que não há lamentações nesse impacto composto de pedofilia, homossexualismo, deduragem, assassinato. O olhar ao mesmo tempo triste e resignado de Jofre Soares (o ator a quem o Brasil jamais poderá agradecer o suficiente) sabe abrir-se nos momentos mais cruciais, quando a lucidez sobre o horror escancara uma janela para a alegria.

A vida e seus espinhos passam rapidamente como chuvas de verão. O que fica é a tenacidade da sobrevivência, o convívio trepidante entre os despossuídos, a dignidade que prescinde da moral conservadora, a glória da ingenuidade que enfrenta a violência e sai ganhando. Nesta narrativa, desfam grandes eprsonagens interpretados por Miriam Pires,a nudez, a resignação e o desejo da terceira idade; Rodolfo Arena, o palhaço encantador e sinistro; Paulo Cesar Pereio, o comportamento crítico diante da falsa arte por meio de genial caricatura do malandro,Gracinda Freire, como a decadente e desesperada atriz de teatro de revista, entre outros.

A rua de casas que serão demolidas para uma futura obra do metrô é pintada como uma paisagem única, onde a decadência da modernidade superpõe-se à seqüência de cores e formas da tradição pictórica brasileira. Como se os séculos anteriores servissem de amparo para a trama que se desenrola entre paredes velhas, com fotos e cartazes antigos, móveis obsoletos. O corpo humano é moldado por essa paisagem e seus gestos são limitados pela penúria da geografia que o circunda. Torna-se patética a justificativa do palhaço criminoso (Rodolfo Arena) que tenta disfarçar a culpa do estupro com o simulacro de um exercício físico. A imagem da solidão absoluta é o aposentado que leva sua cadeira desconfortável para a calçada numa tentativa de fisgar a vizinha. E a precariedade do caráter revela-se na camisa aberta ao peito de Juracy (Paulo César Pereio, absolutamente impossível na sua genialidade).

CIRCO - Há também camadas superpostas de artes populares, como é o caso da cena do teatro de revista que vira drama de circo de subúrbio. Há o rádio, na voz de Chico Alves, o Carnaval, na passagem do bloco do sujo, o dramalhão e a comédia, na trágica cena de suicídio em pleno ato teatral. O mais impressionante neste filme antológico é que Cacá, como os grandes romancistas, expõe as feridas mais profundas dos personagens como se estivesse narrando uma anedota. E conta uma história aparentemente banal com todos os elementos do grande teatro. Ali está a relação edipiana entre adolescente tardio e a estrela decadente; a morbidez do velho (Sady Cabral) que tenta descobrir o estado terminal dos amigos; a senhora muito antiga (Lourdes Mayer) que faz revelações pornográficas e consegue rir do seu fracasso; o almofadinha (o magnífico Daniel Filho, ator infelizmente pouco presente no nosso cinema) que conseguiu escapar da miséria e entrega-se a orgias homossexuais; a filha (Marieta Severo) que nunca vê o pai para poder escapar de suas raízes.

Mas não se entenda essa galeria de horrores como uma entrega da obra às facilidades da desgraça. Sem cair no otimismo – que é a esperança pulando o Carnaval – Cacá Diegues aposta na dignidade de uma vida escassa, mas cheia de grandeza. O final, que são as pessoas indo para o trabalho ao som de um chorinho, nos mata de emoção. A solteirona (Miriam Pires) que ao redescobrir o sexo usa sua saia amarela ao voltar para o batente, o operário que antes de pegar o trem é acompanhado pela mulher e filhos fazem parte de um hino camerístico, a majestade informal de uma cultura que soube encontrar sua identidade e deixa sua marca para ser vivenciada e admirada.

SOMOS ASSIM - Dificilmente “Chuvas de Verão” deixará de ser a obra- prima que é. Por ser um filme perfeito, já nasceu clássico. Por ser a soma da nossa coragem, veio para ficar. Por falar a verdade sem nos humilhar, é um amigo eterno. Por nos abraçar sem nos paparicar, faz parte da família. Por isso é muito mais do que um drama ou uma comédia de costumes. A obra não se enquadra em qualquer moldura. É o que temos para mostrar a nós e ao resto do mundo: somos assim. Por isso somos os melhores.

CONFISSÕES DO ISOLAMENTO - A solidão ocupa, na obra-prima de Cacá Diegues, um lugar de honra. E faço também um resgate pessoal de outros trabalhos de cineastas da minha preferência, para que possamos ver a paisagem cinematográfica brasileira com sua verdadeira diversidade e competência, que chega muitas vezes no raro patamar da genialidade.
 “Passei a vida inteira trabalhando em troca de uma caneta dourada. O que fiz da minha vida?”, diz o aposentado interpretado por Jofre Soares (quem pode esquecê-lo em “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, filme maior de Roberto Santos, onde outro grande ator, Leonardo Villar, faz História?)
- “O senhor me desculpe, mas acho que me fodi na vida”, diz a senhora muito antiga, concertista de piano que se desespera diante da inutilidade da sua trajetória e grava sua performance para que futuros netos (que não virão, já que seu filho escolheu como esposa uma velha atriz decadente de teatro de revista) possam apreciá-la.
- “As crianças são a única alegria da minha vida e só faço apresentações para manter a forma”, diz o palhaço aposentado e pedófilo, interpretado por Rodolfo Arena.
- “Eu também preciso ganhar a vida”, diz Juracy, criação do impiedoso Paulo César Peréio, o ator fundamental do cinema brasileiro, quando tenta justificar sua deduragem.
- “Declama aquele poema do brinde, que me emociona tanto”, diz para sua noiva o personagem Paulinho, o adolescente tardio que não sai da escola para não enfrentar a vida.
- “Eu queria ter aquele filho. Mas a pressão foi enorme. Então decidi me dedicar às minhas irmãs”, diz a solteirona Miriam Pires, momentos antes de provar novamente o orgasmo.
Essas frases revelam a solidão de personagens que jamais se encontram e somam-se ao silêncio desesperado de Marieta Severo depois de descobrir a homossexualidade do marido. “Se eu puder fazer alguma coisa por você”, diz o pai e Marieta devolve para essa frase sem sentido um olhar em pânico e um meio sorriso sombrio.
A apresentação visual da solteirona é revelada pelo súbito mutismo do filme, que estava embrenhado no alarido e no zoom. Quando a enfoca pela primeira vez, afasta o olhar da câmara para colocá-la isolada, na calçada, com suas roupas escuras, seu rosto despedaçado.
- “Estou aposentado, não tenho nada para fazer o dia todo”, diz Jofre Soares, olhando os que passam rumo ao trabalho.

Como viver se você foi jogado fora? E o que rompe o isolamento desses personagens trágicos? Primeiro, a súbita aparição de um bandido, amante da empregada (Cristina Aché) do aposentado, que se esconde na casa dele para ser descoberto por Juracy. A busca da polícia alvoroça a rua e agrega as pessoas em torno da tragédia. No mesmo tom, a apresentação do palhaço que reúne em sua volta a ingenuidade popular e a alegria das crianças – contraponto do cerco que o artista faz a uma menina – resulta numa cena que descamba para a ameaça da violência sobre a festa coletiva. O bar onde se encontram os homens sem nada a fazer, fracassados de seus sonhos (como o ex-jogador de futebol que quebrou a perna em dois lugares), é um antídoto para esse cerco de solidão que cai irredutível sobre cada um.

Mas a esperança – que é a salvação possível, a cura da ressaca provocada pelo horror – dá-se pela coragem de enfrentar as dificuldades. A redescoberta do sexo na terceira idade, a auto-entrega do culpado diante da polícia, o carinho pela família, a aceitação do inevitável são remédios que curam de verdade, mesmo que essa cura seja provisória. O filme nos emociona porque não nos pede licença, nos coloca contra a parede mas não tira proveito disso. Ao contrário, nos entrega uma obra de referência, a quem devemos fazer uma visita periodicamente, assim como devemos reler os clássicos.

TODOS OS DOMINGOS DO MUNDO – Assim como Matraga, de Roberto Santos (o cineasta de morreu de um ataque cardíaco depois de um festival de Gramado, onde não recebeu prêmio algum), temos, em Todas as Mulheres do Mundo e Edu, Coração de Ouro, de Domingos de Oliveira, outros exemplos de filmes perfeitos. Anexo à lista São Paulo S.A. (obra-prima absoluta) e O Caso dos Irmãos Naves, de Luiz Sérgio Person e O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias. Além, é claro, de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, Os Fuzis, de Ruy Guerra, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe , de Glauber Rocha. Mas estes são por demais conhecidos e incensados. Nem precisa lembrar o que são – obras-primas brasileiras que deslumbraram o mundo. Só queria chamar a atenção para meus filmes nacionais favoritos que não costumam ganhar o mesmo tipo de admiração e carinho.