Nei Duclós
Devo acreditar que Denzel Washington não convence, de
propósito, como alcoólatra, em Flight (2012), de Robert Zemeckis? O personagem mente tão
profundamente sobre seu vício que o ator repassa a dúvida para o espectador? Seria uma peformance top (indicada ao Oscar) nessa
história de um longo e lento suicídio não assumido que mudou de natureza e acabou virando o assassinato de seis
pessoas numa viagem desastrada. Beber todas é a
maneira que o capitão Whip Whitfield encontra para acabar com a vida, já que foi expulso de
casa devido ao alcoolismo e não pode ver o filho. Rola na cama de hotéis
dormindo com aeromoças e trabalha sem parar em voos domésticos em aviões
sucateados. Seu álibi é a capacidade exímia de voar, que em princípio justificaria
sua defesa no acidente que acabou em pouso forçado no campo de uma igreja
batista.
Flight/fly: a mosca/piloto sobrevoa o estrume a que se
condenou desde a infância, quando o pai, também piloto, caiu em desgraça e
perdeu a licença de voar.. Aparentemente ele se exime da culpa de ter caído
nessa espiral de horror, mas encara como uma opção, que é uma confissão
explícita de suicídio. Ele escolheu a morte e por isso toma duas garrafas de
vodka em pleno voo (misturadas a suco de laranja), depois de passar por sessões de anfetaminas,
cocaínas e outras drogas. A desconfiança
de que é culpado o empurra para uma companheira ideal, uma viciada em heroína,
que tenta se salvar e levar o piloto para a consciência de sua situação.
Mas ele recusa, pois está de olhos tapados e não apenas
devido ao desastre. Não enxerga direito o que houve e vê tudo pela lente de um
celular ou dos remédios que toma para curar os efeitos de uma concussão na hora
da aterrissagem. Seu único aliado é o traficante interpretado maravilhosamente
por John Goodman, que o acende, na hora da ressaca, com doses poderosas de pó.
Está claro que esse desequilíbrio todo uma hora mostrará o rosto desfigurado
publicamente. Ele tenta fugir, se esconder, pois encarna uma contradição: o
herói que conseguiu o pouso impossível salvando vidas é o mesmo que dirigiu
alcoolizado e por isso pode pegar prisão perpétua.
O desenlace acontece numa situação limite, que é um dos
temas recorrentes do diretor Zemeckis, como em Náufrago. É quando a
investigadora do caso se aproxima dele e o encara fazendo as perguntas mais
importantes. Ele está quase convencendo a banca de que é inocente quando se
recusa a incriminar a amante aeromoça, morta no acidente, injustamente acusada
de ter consumido a vodka . E confessa o crime assumindo a culpa do alcoolismo,
do qual não consegue se livrar.
O suicídio não é um assunto cultural, como na Europa,
especialmente em Camus de O Estrangeiro ou o Moravia do romance 1934. É uma dor
mascarada pela ilusão, especialidade americana. Quem é você? pergunta o filho ,
ao que responde: boa pergunta. É não uma crise de identidade, mas a necessidade
de uma persona regida pela ética, para que possa sobreviver no engessamento da
correção sob a bandeira estrelada.
Fui tentado a achar o filme mais ou menos, descontando a boa
performance dos atores e a qualidade do roteiro, a cargo de John Gatins. Se
visse apenas pelo que o filme tenta transparecer, o da recuperação de um
viciado em álcool, é realmente até meio babaca. Mas se levarmos em conta que é sobre
pacto de morte não assumido, fica
melhor. O lúcido condenado à morte por câncer, de mente confusa e verbo
contundente, que fila cigarros no
fumódromo improvisado do hospital, alerta Whip sobre as chances inauguradas pelo
acidente. Sua situação limite agora pode ficar clara, desde que ele se disponha
a tirar a venda dos olhos e ver-se sem álibis nem rodeios.