10 de março de 2013

FLIGHT: O VOO SUICIDA



Nei Duclós

Devo acreditar que Denzel Washington não convence, de propósito, como alcoólatra, em Flight (2012), de Robert Zemeckis? O personagem mente tão profundamente sobre seu vício que o ator repassa a dúvida para o espectador? Seria uma peformance top (indicada ao Oscar) nessa história de um longo e lento suicídio não assumido que mudou de natureza e  acabou virando o assassinato de seis pessoas numa viagem desastrada. Beber todas é a maneira que o capitão Whip Whitfield encontra para acabar com a vida, já que foi expulso de casa devido ao alcoolismo e não pode ver o filho. Rola na cama de hotéis dormindo com aeromoças e trabalha sem parar em voos domésticos em aviões sucateados. Seu álibi é a capacidade exímia de voar, que em princípio justificaria sua defesa no acidente que acabou em pouso forçado no campo de uma igreja batista.

Flight/fly: a mosca/piloto sobrevoa o estrume a que se condenou desde a infância, quando o pai, também piloto, caiu em desgraça e perdeu a licença de voar.. Aparentemente ele se exime da culpa de ter caído nessa espiral de horror, mas encara como uma opção, que é uma confissão explícita de suicídio. Ele escolheu a morte e por isso toma duas garrafas de vodka em pleno voo (misturadas a suco de laranja), depois de passar por sessões de anfetaminas, cocaínas e outras drogas.  A desconfiança de que é culpado o empurra para uma companheira ideal, uma viciada em heroína, que tenta se salvar e levar o piloto para a consciência de sua situação.

Mas ele recusa, pois está de olhos tapados e não apenas devido ao desastre. Não enxerga direito o que houve e vê tudo pela lente de um celular ou dos remédios que toma para curar os efeitos de uma concussão na hora da aterrissagem. Seu único aliado é o traficante interpretado maravilhosamente por John Goodman, que o acende, na hora da ressaca, com doses poderosas de pó. Está claro que esse desequilíbrio todo uma hora mostrará o rosto desfigurado publicamente. Ele tenta fugir, se esconder, pois encarna uma contradição: o herói que conseguiu o pouso impossível salvando vidas é o mesmo que dirigiu alcoolizado e por isso pode pegar prisão perpétua.

O desenlace acontece numa situação limite, que é um dos temas recorrentes do diretor Zemeckis, como em Náufrago. É quando a investigadora do caso se aproxima dele e o encara fazendo as perguntas mais importantes. Ele está quase convencendo a banca de que é inocente quando se recusa a incriminar a amante aeromoça, morta no acidente, injustamente acusada de ter consumido a vodka . E confessa o crime assumindo a culpa do alcoolismo, do qual não consegue se livrar.

O suicídio não é um assunto cultural, como na Europa, especialmente em Camus de O Estrangeiro ou o Moravia do romance 1934. É uma dor mascarada pela ilusão, especialidade americana. Quem é você? pergunta o filho , ao que responde: boa pergunta. É não uma crise de identidade, mas a necessidade de uma persona regida pela ética, para que possa sobreviver no engessamento da correção sob a bandeira estrelada.

Fui tentado a achar o filme mais ou menos, descontando a boa performance dos atores e a qualidade do roteiro, a cargo de John Gatins. Se visse apenas pelo que o filme tenta transparecer, o da recuperação de um viciado em álcool, é realmente até meio babaca. Mas se levarmos em conta que é sobre pacto de morte  não assumido, fica melhor. O lúcido condenado à morte por câncer, de mente confusa e verbo contundente,  que fila cigarros no fumódromo improvisado do hospital, alerta Whip sobre as chances inauguradas pelo acidente. Sua situação limite agora pode ficar clara, desde que ele se disponha a tirar a venda dos olhos e ver-se sem álibis nem rodeios.