Nei Duclós
1984, ano do lançamento do filme Memórias do Cárcere, foi
pautado pela movimentação pró-eleições presidenciais. Leonel Brizola, que
encarnava a herança getulista, era o alvo principal da ditadura que queria se
consolidar como democracia. Era preciso intensificar a vilanização de Vargas,
mentindo sobre sua obra política, o Brasil soberano. O filme, produzido por
Luiz Carlos Barreto e dirigido por Nelson Pereira dos Santos,e baseado no livro de mesmo nome de Graciliano
Ramos, fez parte desse trabalho de desmoralização do trabalhismo histórico.
Foi fácil. Bastou mostrar no início do filme o paredismo integralista
sugerido como campanha política do governo Vargas, o que é mentira, pois em
1938 os integralistas tentaram derrubar o presidente cercando e tiroteando o
Palácio do Catete. Ao longo da narrativa, foram colocados cacos que não constam
no livro, como a versão de que o acordo de Getúlio com os Estados Unidos era
traição à soberania do país, o que era exatamente o contrário,pois Getulio
renegociou a divida externa conseguindo zerá-la de fato ao final da II Guerra,
em 1945. Outro truque foi confundir o governo federal com as Forças Armadas, anacronismo
que se referia ao golpe de 1964, quando a história era outra.
Por que Graciliano foi preso? Porque foi vitima da
politicagem regional de Alagoas, onde exercia o cargo de Diretor da Instrução
Pública e fez vários inimigos. Como era simpatizante da Aliança Nacional
Libertadora e ferrenho crítico do sistema capitalista, virou alvo fácil dos
ressentidos que o encarceraram, com destaque para o tenentinho que se vingou de
uma recusa quando o escritor estava empregado como funcionário público. Levado de roldão pela ressaca da quartelada
de 1935, Graciliano caiu na vasta rede de retaliações comandadas pelas Forças Armadas
e pelos grupelhos políticos regionais oportunistas.
A chamada Intentona de 1935 foi fruto de longa pregação
comunista nos quartéis, que a partir de 1930 ganhou intensidade, como pude
verificar pessoalmente nos arquivos do Deops paulista quando fazia a graduação
em História da USP. O golpe estava sendo gestado por revolucionários
profissionais remunerados por Moscou, como provou William Waack no livro
Camaradas. Mas foi desencadeado na tropelia, por um movimento por melhores
soldos da Força Pública de Natal, que colocou tropa na rua e os comunistas
resolveram criar uma republiqueta nordestina. Pego com as calças na mão, o líder
do movimento, Luis Carlos Prestes, teve que assumir o problema e o resultado
foi um desastre.
O tenente Agildo Barata tomou o Terceiro Regimento de Infantaria
na Praia Vermelha e o general Eurico Gaspar
Dutra acabou com a rebelião canhoneando o quartel. O resultado foi uma
ferida profunda nas Forças Armadas, que na época procurava a unidade via Gois
Monteiro, o líder militar de 1930. Comunistas, simpatizantes, progressistas,
aliancistas e demais personalidades foram encarcerados de maneira brutal em
quartéis e muitos lá morreram na tortura e na inanição, misturados a presos
condenados por crimes comuns. Graciliano descreve os horrores dessa tragédia no
seu livro magistral.
Depois de sair da prisão, Graciliano foi trabalhar no
Ministério de Educação e Cultura e publicou todos os livros que quis, sem
censura. Na Wikipédia, o verbete sobre o filme diz que a prisão do escritor
aconteceu no Estado Novo, o que é mentira. Em 1936 não havia Estado Novo, mas
sim governo constituinte, eleito em 1934. Contra o governo constituinte foi
dado o golpe de 1935. Os fascistas se aproveitaram e queriam tomar o poder
central, mas Getulio, num contragolpe, aliou-se aos militares nacionalistas e
impediu o golpe de inspiração nazista, criando o Estado Novo.
Regime de exceção no período da grande guerra, o Estado Novo
consolidou as leis trabalhistas, implantou a siderurgia (numa bem articulada
negociação no xadrez político internacional), mandou tropas para a guerra europeia
lutando a favor dos aliados, abriu o espaço aéreo do nordeste para a aviação
anti-Eixo e por isso o Brasil era tido em alta consideração por Roosevelt. No
final da guerra, depois que Getulio foi receber os pracinhas vitoriosos no porto
do Rio de Janeiro, o governo federal preparava as eleições criando dois
partidos, o PSD, de centro, e o PTB, trabalhista.
Mas um golpe militar, em outubro de 1945, acabou com o
governo. As eleições foram realizadas, com a vitória do candidato indicado por Getúlio,
o general Dutra, que acabou se aliando à UDN e à política americana pós-Roosevelt,
de sucateamento do Brasil.
No livro Os Saltimbancos da Porciúncula, anotações do
jornalista e escritor Antonio Carlos Villaça (1928-2005) sobre personalidades
do mundo literário, e destacado num artigo pelo poeta Sidnei Schneider, surge
alguma luz sobre fatos que envolvem o escritor Graciliano Ramos e o presidente Getúlio
Vargas. “Graciliano estava preso, sem
processo. Aquilo era um absurdo. Pois, certa manhã, José Lins do Rego, seu
grande amigo, foi ao Palácio da Guanabara para conversar com Herman Lima,
oficial-de-gabinete de Getúlio. José Lins ia pedir a Herman Lima que pedisse a
Getúlio a libertação de Graciliano. O cearense prometeu que sim, que ia pedir a
Getúlio. Assim fez. Quando sentiu que o presidente estava de bom humor, fez o
pedido. “Não mandei prender Graciliano,
não mando soltar Graciliano”, disse Getulio. “Mas telefone em seu nome ao
general Pinto (Francisco José Pinto, chefe da Casa Militar) e lhe peça para
telefonar ao Filinto, perguntando por que o Graciliano está preso. Assim fez
Herman Lima. Filinto mandou soltar Graciliano. Este saiu da cadeia e foi
hospedar-se em casa do seu amigo Lins do Rego, na rua Alfredo Chaves, em
Botafogo. “
Em 1953, Graciliano terminou seu relato da cadeia, mas não
fez o capítulo final, da sua soltura. O filme é fiel ao livro, menos no desfecho.
Graciliano não ganha a liberdade depois de sair da Ilha Grande, mas só depois,
já que voltou ao cárcere no Rio e lá ficou mais uma temporada.Mas o filme
gostou desse final e deu por encerrada a história.
Carlos Vereza está bem, faz um Graciliano muito doce com
alguns surtos de rispidez, o que talvez não esteja muito sintonizado com o
personagem real, que era ríspido a maior parte do tempo. Mas é um bom Graciliano,
que nos ganha na simpatia, lucidez e coragem. É um registro da história do país
e da era Vargas. O presidente Getulio lidava com forças reacionárias poderosas.
Não foi inocente, mas omisso e muitas vezes protagonista de crueldades. Imperdoável
sob todos os aspectos. Mas é preciso conhecer os fatos em sua inteireza sob
pena de usarmos a História para atender a interesses políticos do presente.