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16 de julho de 2011
O SANGUE AZUL DA REPÚBLICA
Os americanos cobiçam a Corte, instituição monárquica que garante status hereditário e hegemonia sobre os demais adquiridos no berço. Numa República, onde sobram palácios para tudo, o que atrapalha é o voto, mas nada que uma urna eletrônica programada, um bipartidarismo viciado, um sistema de representação política engessado, ou um marketing milionário não dê jeito. Por isso temos linhagens seculares no mundo republicano, com trisnetos seguindo o passo dos ancestrais, mas não é a mesma coisa do que um duque, um conde, uma princesa, um rei. Essa demanda reprimida acaba desaguando em todo tipo de título nobiliárquico para personagens da indústria do espetáculo, onde imperam as cabeças coroadas (aqui no Brasil, temos reis, rainhas e imperadores na música ou no esporte) .
No cinema, sempre há história de alguém que ascende à nobreza, principalmente por meio da especialidade americana, a ilusão da arte audiovisual. Basta ver qualquer Sessão da Tarde para se entupir de histórias de jovens americanas que conquistam príncipes europeus. Ou então, os contos de fadas em que cinderelas se fantasiam para roubar o coração de uma herdeiro do trono. Cinderela é personagem recorrente na Sétima Arte, mesmo que a ilusão seja datada e tudo volte ao normal no final da fita, pois alguém sai ganhando, se não a protagonista principal, pelo menos algum personagem coadjuvante, que acaba casando e ascendendo para o sangue azul.
Por duas vezes, Frank Capra filmou a mesma história que tem tudo a ver com essa vocação. Dama por um dia de 1933 (Lady for a Day) e sua refilmagem em 1961 (Pocketful of Miracles) conta a história da mendiga e vendedora de maçãs que recebe a visita da filha, que vem comprometida com um conde, já que ela, a mendiga, finge ser milionária em cartas de papel timbrado surrupiados de um hotel de luxo. A vinda da herdeira põe a velha mulher em pânico, que é socorrida por um gangster e sua noiva, que a transformam numa verdadeira senhora da alta sociedade, ou seja, o espelho mais próximo da nobreza européia.
Prefiro a segunda versão, que acabo de ver (a primeira também está disponível, mas no you tube). Ali estão todos os elementos da maneira como os EUA vêem sua principal deficiência, ou seja, a falta de uma linhagem nobre na sua elite. Como poderão imperar se não existir o destino manifesto, o cargo ungido por Deus, incontentável, como acontece nas monarquias? Sem isso, o poder precisa ser exercido à força, que é o que acontece com as sucessivas invasões em diversos países. Mas Capra deu um jeito. Sem tapar o sol com a peneira, mostra que a maestria americana em criar ilusões serve perfeitamente para outorgar ao país o que mais lhe falta, um título de nobreza. Assim, a velha mendiga (interpretada magistralmente por Betty Davis) é travestida para receber a filha (Ann Margret, linda, bem mocinha) e a família do noivo, com o apoio dos gangsters (Peter Falk está impagável, absolutamente gênio) e os ambulantes da cidade.
Ao contrário da primeira versão, que segue todo tempo os passos da velha, a segunda divide o foco entre Dude, o chefe da quadrilha (Glenn Ford, ótimo), e seu esforço para dominar Nova York, dividido entre a ação que isso representa e a perspectiva da modorra no casamento, e Annie Apple, a vendedora de maçãs, que vive em função da filha distante. Trata-se de Nova York, a sedução representada pelo fruto proibido. A moça que desconhece a situação miserável da mãe e é sustentada pelas gorjetas que a mulher consegue na sua faina nas ruas, vai virar condessa por meio do casamento, mas antes sua família precisa passar pelo crivo da auditoria monárquica. É para driblar essa inspeção que a trama se arma.
A mulher do gangster ( a bela Hope Lange)é filha de um assecla de Dude que morreu endividado. Ela precisa pagar a dívida e casar com o gangster, portanto quer também transcender sua origem para chegar ao seu destino, que é uma casa pacata com marido e filhos. Seu apelido é Queenie (diminutivo de Queen, rainha) e seu nome verdadeiro é Elizabeth, et pour cause. Para deixar de ser a pequena rainha da noite para tornar-se a rainha Elizabeth do lar, ela tenta (e consegue) convencer seu noivo a apoiar a vendedora de maçãs, alimentar a ilusão para que a filha possa escapar da pobreza.
Tudo dá certo, como acontece sempre nos filmes do otimista Capra. A velha convence os nobres graças a uma chantagem do gangster sobre os grandalhões de Nova York, prefeito e governador inclusive. Mas volta para as ruas, pois sua missão está cumprida. Foi nobre por um dia, mas não importa, a filha, sua descendência,está garantida, entrou para o panteão da nobreza. É quando os cidadãos da república podem usufruir dos privilégios do sangue azul.
O ritmo dos diálogos, a perfeição das cenas, as interpretações magistrais (como a de Thomas Mitchell como o juiz corrupto) fazem da segunda versão de Dama por um dia um filme antológico. É absolutamente hilário e encantador. O encanto que cruza o tempo e se mantém intacto. Não se trata de cultuar o passado, mas de competência na arte difícil que é o cinema.
Quem dá dimensão exata da grandeza do filme é Bette Davis. Quando ela é transformada numa dama, por exemplo, assume aquela postura tão conhecida da sua biografia cinematográfica, em inúmeros filmes em que deitou charme enchendo a tela. Mas esse ar aristocrático, que ela faz transparecer tão natural, ficaria estranho para uma mendiga. Bette Davis então o que faz? Caminha de maneira trôpega pela sala, pois o andar define a personagem. O contraste entre sua aparência, suas roupas e maquiagem, com aquele andar prejudicado, é uma grande performance desta que é uma das maiores atrizes de todos os tempos.
RETORNO - Imagens desta edição: na foto maior, Bette Davis e Glenn Ford; na menor, Peter Falk.
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