14 de outubro de 2010

SUPERNOVA


Nei Duclós

A literatura são janelas abertas para mundos que sobrevivem na memória dos que já foram. É como raio que incide no interior de uma bolha isolada de todas as outras. Vemos cadeiras em varanda, cães em quintal, cavalos no horizonte, latas velhas empilhadas num canto, crianças em volta de alguém, uma cidade inteira olhando para o alto para ver uma estrela de dia, numa época em que satélite artificial era novidade. Vemos bandeiras sendo carregadas em desfile e uma prosa no balcão de pedra, em armazém encardido, lá onde todos perderam as botas.

Mas nem tudo é ancestralidade. Vemos viagens animadas de médicos moços a trabalhar em situações de emergência, plugados em aplicativos de alta tecnologia, a compartilhar decisões sobre pandemias e salvações enquanto o clima ou o desgoverno empurra multidões de um lado para outro, na terra cada vez mais prenhe de desertos. Somos capazes de ouvir o grito das mulheres alertando sobre a chegada de provimentos num reduto de exílios.

Somos assim, vistos pela literatura, habitantes de uma cidade só, de um continente único, caminhando por calçadas que se ligam entre uma parte e outra do sistema planetário. É assim que nos transformamos pela mão dos narradores: somos rastros luminosos no tempo a costurar espaços que não se conhecem.

Por isso quando abrimos um livro bom de ler nos encontramos como Borges naquele subúrbio longínquo, imutável durante um século, que lá estava à revelia do observador. Este, poderia sumir com sua desimportância, que a vida daquela parte da cidade de muros derrubados, batida pelo vento e a chuva, e o sol que trafegava em silêncio em liquens e portais, nem se mexeria. Talvez a vida seja essa percepção de que vivemos à margem de algo maior que não nos enxerga e por isso carregamos esse ar triste, como se fôssemos arlequins em ressaca tardia depois de um baile onde conhecemos finalmente o primeiro amor.

Esse amor se foi junto com a alvorada e arrastamos a inútil fantasia por entre passantes indiferentes ao sofrimento dos trespassados pela noite. Aportamos saudosos de uma época vivida e temos de recomeçar cada segundo, com a cara lavada e o sonho cerzido na alma pobre. Não possuímos essa pose que faz a glória das imagens estampadas nas mídias de luxo, mas aspergimos alguma graça como pássaros assustados numa primavera que enfim chegou.

No fundo era sobre isso que eu queria falar: a chegada da estação mais bela, quando temos enfim uma trégua entre o frio que nos castigou e o verão que irá nos sobressaltar. É o momento de olhar para o céu, como faziam os antigos. Procuramos um sinal de que o universo é algo idêntico ao que criamos em nossa literatura. Pois ele se divide entre muitas moradas, para que todas usufruam do amor correspondido de uma divindade que sabia bem o que estava fazendo quando decidiu sair daquela semente que explodiu como uma supernova. Foi quando ele inventou a tarde clara diante do pampa ou do mar, esses irmãos gêmeos da nossa alegria.

RETORNO - 1.Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana.2. Imagem desta edição: Feixes, obra de Ricky Bols.

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