7 de setembro de 2010

DEIXE A MOÇADA DE TEERÃ TOCAR EM VOCÊ


A cultura dos clipes acabou com os musicais, mas estes resistem, quando pertencem a uma linhagem que vai de "Sweet Charity", de Bob Fosse, a "West Side Story", de Jerome Robbins e Robert Wise, em que as canções e os intérpretes fazem parte da narrativa, são a essência do fluxo da história e não convivem à parte, como se fossem enxertos. Quando um musical extrapola seu gênero e torna-se um semidocumentário de ficção, feito no Irã sem licença do governo, e se transforma numa obra-prima graças ao roteiro, às imagens, à edição , às músicas e aos intérpretes, então recuperamos a esperança de que o cinema tem esse poder de reação contra a mediocridade dos clipes e suas falsas transgressões comerciais.

É o caso de Ninguém sabe sobre os gatos Persas (2009), de Bahman Ghobadi, aclamado cineasta que já ganhou a Palma de Ouro há uma década com A Time For Drunken Horses e que no seu primeiro filme, Life in fog, ganhou tudo que é prêmio. Dividindo o roteiro com Hossein Mortezaeiyan e Roxana Saberi, ele filmou Teerã com a câmara no ombro, por meio da música oculta produzida clandestinamente pela moçada, e que cruza influências internacionais do ocidente com a contribuição local. Foi o que fizemos quando estávamos vivos.

Em princípio, é a história da formação de uma banda para se apresentar em Londres, uma escapada por meio de passaportes falsos, a cargo de um casal, real, Negar Shaghaghi e Ashkan Koshanejad, que contrata um empresário jovem, o fantástico Hamed Behdad no papel do motoqueiro virador Nader. Mas no fundo é uma viagem por todos os bairros, ruas, becos, casas e personagens de Teerã, a megacidade onde, como diz um rapper local, a luta de classes transforma as pessoas em bichos ou lixo.

Ficamos assim viajando dentro da megalópole por meio do que a moçada de lá toca, encerrada em porões e sótãos e estúdios alternativos, procurando uma saída em meio á repressão e a violência. O filme foi feito em 18 dias e as cópias contrabandeadas logo depois para fora do país, junto com os principais protagonistas, pois sabemos o que existe no Irã, uma ditadura que usa a democracia para se perpetuar e por essa obra é apoiada e incensada pelo nosso atual governo.

O filme pega na veia e arrebata pelo muito que mostra e o deslumbramento das imagens e dos sons. Cada banda ou intérprete leva o espectador para um aspecto da vida da grande cidade. Quando a vocalista canta, são as mulheres que aparecem, desde as meninas até as grávidas, as velhas, as multidões femininas. Quando é o grupo de rap, aparece toda a miséria e a violência da população marginalizada. Quando é um grupo folclórico (o diretor é de etnia curda), vemos uma representação da grandeza do país, suas paisagens solenes e as obras monumentais. Se o som é rock alternativo, o dinamismo do trânsito e das calçadas desfilam diante de nós.

Você acaba preso a essa viagem radical e transformadora. Sua percepção sobre o Irã muda, sua noção de musical se amplia e a vontade de ver mais filmes do diretor se transforma numa obsessão. É crime hediondo o que fazem conosco: deixam esses filmes em festivais e circuitos alternativos, jamais passam na televisão, aberta ou paga e nos empurram porcarias americanas sem parar, num show de estupidez e barbárie sem precedentes.

Queremos as lições da resistência iraniana, a que não se abraça com os tiranos, como fazemos por aqui. Deixe a moçada de Teerã tocar em você. Prometo que você vai chorar de emoção.

RETORNO - Imagem desta edição: em primeiro plano, os músicos e personagens reais do filme, Ashkan Koshanejad e Negar Shaghaghi, junto com seus companheiros de aventura.

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