Não lembro quase nada do filme La Cina é vicina, que cheguei a ver no cinema, quando eu ia ao cinema, mas posso dizer com propriedade, graças ao Google, que é de Marco Belochio e de 1967. Tomei emprestado o título para comentar Still Life, ou Natureza Morta, ou Em busca da Vida, do novo cineasta cult chinês, Jia Zhang-Ke, nascido em 1970 e um veterano de boas produções. Esta, ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 2006. Muito já foi dito sobre esse grande filme, que aborda o esgarçamento das relações sociais em meio à lenta submersão de uma cidade histórica em função da megausina Três Gargantas, projeto maoísta inspirada em Itaipu, e que será inaugurada no ano que vem. Prefiro enfocar as coincidências explícitas com o Brasil.
Nunca o povo chinês mostrado na tela foi tão brasileiro. O mineiro que se engaja nas demolições, as rodas de cigarro e aguardente, a aparente passividade, a malandragem ingênua, a afetividade navegando na frieza, os corpos suados e detonados em meio às ruínas. Zhang-Ke filma lentamente, como Wim Wenders em Paris, Texas, e revela a grande paisagem do interiorzão do país se transformando junto com seus habitantes. Os subúrbios sujos, os edifícios encardidos, os terraços favelados, as salas aglomeradas, as pensões baratas, as conversas intermináveis sobre dinheiro, o barulho, a tristeza sem fim.
É tão desumano o que está sendo feito, é tão deteriorado o ambiente, é tão imóvel a mente das pessoas, é tão armadilhada a situação em que se meteram, que nenhuma ponte iluminada, nenhuma tecnologia de massa, como os celulares na mão de todos, nada, absolutamente nada poderá redimir tamanha tragédia. Mas o impressionante é que tudo isso tem o tom de um poema épico, jamais de uma agonia. É uma dissonância do discurso cinematográfico, essa força transmitida pela imagem em confronto com a fragilidade humana e das águas,montanhas e vegetação que submergem sob a pressão das decisões políticas e econômicas.
É um privilégio ver essa China que nada tem de milenar (idéia soterrada pelo comunismo de resultados maoísta e que segue firme na atual maré alta do capitalismo chinês). É um assombro ver que toda a tradição dá lugar à precariedade do eterno presente e só o que sobrevive como sinal de grandeza é essa busca pelos entes queridos e desaparecidos, esse esforço de reatar casamentos e filiações, essa força que empurra as pessoas de volta para os grupos destruídos pela avalanche da época. Filme de alta dosagem dramatúrgica, feita com atores amadores, para que tudo esteja livre da intervenção dos clichês e se sobressaia a grande arte desse diretor magnífico.
Nenhum país, a não ser o nosso, perdeu a noção do épico. Pois a radical mudança das nações clama por um cinema desse tipo, que chega ao delírio de sugerir discos voadores na impessoalidade cética dos habitantes, a brincar de surrealismo quando um edifício vira um foguete e sobe aos céus. Nós ficamos na pontualidade estéril, na exposição criminosa dos corpos, enquanto pessoas como Zhang-Ke encontram, no povo ao qual pertence, essa saga que se desdobra aos borbotões. Aqui acontece o mesmo na prática, mas nossos cineastas, em sua maioria, estão com as costas voltadas para esse mural de acontecimentos.
Precisamos seguir esse exemplo, precisamos nos emocionar com nosso país, ver com os olhos livres, enxergar o que está acontecendo conosco, criar/encontrar histórias em meio ao caos. Sob pena de submergirmos como a cidade de Fengjie em Still Life. A vida resiste por mais que o sertão vire mar e o mar sertão. O sopro monumental do povo diante do seu destino: eis a China de Zhang-Ke, eis o Brasil que precisamos ter em nossas retinas tão cansadas.
RETORNO - Imagem de hoje: cena de "Em busca da vida", de Jia Zhang-Ke. Um épico sobre a China contemporânea, obrigatório em todos os sentidos.
Nunca o povo chinês mostrado na tela foi tão brasileiro. O mineiro que se engaja nas demolições, as rodas de cigarro e aguardente, a aparente passividade, a malandragem ingênua, a afetividade navegando na frieza, os corpos suados e detonados em meio às ruínas. Zhang-Ke filma lentamente, como Wim Wenders em Paris, Texas, e revela a grande paisagem do interiorzão do país se transformando junto com seus habitantes. Os subúrbios sujos, os edifícios encardidos, os terraços favelados, as salas aglomeradas, as pensões baratas, as conversas intermináveis sobre dinheiro, o barulho, a tristeza sem fim.
É tão desumano o que está sendo feito, é tão deteriorado o ambiente, é tão imóvel a mente das pessoas, é tão armadilhada a situação em que se meteram, que nenhuma ponte iluminada, nenhuma tecnologia de massa, como os celulares na mão de todos, nada, absolutamente nada poderá redimir tamanha tragédia. Mas o impressionante é que tudo isso tem o tom de um poema épico, jamais de uma agonia. É uma dissonância do discurso cinematográfico, essa força transmitida pela imagem em confronto com a fragilidade humana e das águas,montanhas e vegetação que submergem sob a pressão das decisões políticas e econômicas.
É um privilégio ver essa China que nada tem de milenar (idéia soterrada pelo comunismo de resultados maoísta e que segue firme na atual maré alta do capitalismo chinês). É um assombro ver que toda a tradição dá lugar à precariedade do eterno presente e só o que sobrevive como sinal de grandeza é essa busca pelos entes queridos e desaparecidos, esse esforço de reatar casamentos e filiações, essa força que empurra as pessoas de volta para os grupos destruídos pela avalanche da época. Filme de alta dosagem dramatúrgica, feita com atores amadores, para que tudo esteja livre da intervenção dos clichês e se sobressaia a grande arte desse diretor magnífico.
Nenhum país, a não ser o nosso, perdeu a noção do épico. Pois a radical mudança das nações clama por um cinema desse tipo, que chega ao delírio de sugerir discos voadores na impessoalidade cética dos habitantes, a brincar de surrealismo quando um edifício vira um foguete e sobe aos céus. Nós ficamos na pontualidade estéril, na exposição criminosa dos corpos, enquanto pessoas como Zhang-Ke encontram, no povo ao qual pertence, essa saga que se desdobra aos borbotões. Aqui acontece o mesmo na prática, mas nossos cineastas, em sua maioria, estão com as costas voltadas para esse mural de acontecimentos.
Precisamos seguir esse exemplo, precisamos nos emocionar com nosso país, ver com os olhos livres, enxergar o que está acontecendo conosco, criar/encontrar histórias em meio ao caos. Sob pena de submergirmos como a cidade de Fengjie em Still Life. A vida resiste por mais que o sertão vire mar e o mar sertão. O sopro monumental do povo diante do seu destino: eis a China de Zhang-Ke, eis o Brasil que precisamos ter em nossas retinas tão cansadas.
RETORNO - Imagem de hoje: cena de "Em busca da vida", de Jia Zhang-Ke. Um épico sobre a China contemporânea, obrigatório em todos os sentidos.
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