17 de agosto de 2007

A TRAPAÇA DO TEMPO


Nei Duclós

É uma trapaça do tempo: tudo cicatriza e nos distancia. O que era fogo vira lembrança. Há uma superfície lisa na memória, como lago morto. Queremos que seja domingo e um barco deslize sob a sombra aprovadora das árvores da margem. Mas é gelo e uma dança coletiva e tonta nos invade.

Mergulho novamente naquela viagem, quando cruzei o pampa em direção à capital, e de lá pela primeira vez ao mar. Era trem e havia fuligem, um ar grosso de abandono em bancos duros, uma travessia interminável e, muitas vezes, amarga. Minha esperança de conhecer o mundo se esvaiu quando nada vi de excepcional na grande cidade que acenava do fim da linha. Preferia voltar, mas era tarde. Eu tinha sido convocado para encarar meu destino de criatura mortal.

Fomos então para o litoral, na enorme e única praia que mostra a cara do mar sem nenhum véu, nem máscara, nem recortes de baías ou mansidão de morros. Éramos jogados de frente à fúria líquida que surgia por trás de imensas dunas. Lá vi a cara do terror de uma paisagem que era pura traição. Enfrentei o enigma dando soco nas ondas e permaneci assombrado no mais longo verão da minha vida.

Acostumado ao rio, que era possível tragar, por uns dias insisti em engolir o sal que explodia em espumas a meus pés. Fui puxado para covas rasas inventadas pela maré. Dormi em catres de lona, longe do conforto da minha casa de esquina. Queria de novo ser rodeado pela paisagem como regaço, não como revolta. Ver de novo o pampa, ondulado e rígido como estátua, onde perdizes batem asas de matraca e um tiro certeiro ecoa através das janelas de vidro.

Sonhava em reviver nossas caçadas, quando ficávamos na carreteira, à espreita. Armados com pesados cartuchos, explodíamos o ar com o aprendizado de tiros que costumavam bater na coxilha, ou no aramado, ou até mesmo na estrada, lá adiante. Às vezes um de nós acertava e era uma festa na caça dominada pelos adultos.

Queria sair de perto do mar, que ameaçava. Ver de novo a praça esplêndida em noites cheias de gente, o quiosque regado a refrigerante gelado, o footing das meninas que moravam em nossos sonhos. Queria de volta as tardes de domingo, quando via desatar-se do estádio municipal a multidão engravatada, que via o jogo como se assistia a uma ópera, com seus chapéus de feltro, sua compenetração de povo às vésperas do primeiro campeonato mundial.

Ainda não sabíamos que país nos habitava e só agora sabemos, quando todas as feridas cicatrizaram, e não podemos mais dizer o quanto perdemos, e não foi apenas a infância. Perdemos o orgulho que nunca foi vaidade, a grandeza longe das patriotadas, a gana de quem pertencia a algo maior, que extrapolava bandeiras e tremulava no céu como um aviso. Éramos o povo da nação soberana antes do exílio a que nos condenaram.

Foi quando voltei enfim para minha cidade e fui recebido em silêncio pela escrivaninha onde depositava meus cadernos, canetas, réguas. O cheiro de livro novo prometia março, quando voltaríamos às aulas. Havia possibilidade de vento, que se desataria na próxima invasão festiva do colégio, por enquanto silencioso, quebrado apenas pelo ângelus de batinas arrastadas em pisos devotos.

Morávamos em frente ao lugar onde me formei para a vida, que tardava. A biblioteca, o campo de futebol, os uniformes, as bicicletas amontoadas, tudo fazia parte do acervo que eu abandonara quando me levaram para ver o mar. Eu deveria estar contente na minha volta da temporada, mas algo faltava. Existia agora um buraco na alma do menino da fronteira fechada. Foi quando me debrucei para escrever o primeiro poema. Estava fisgado para sempre.

Continuava à cata daquele primeiro vôo que me revelara o sopro das mudanças. Aguardava a insurreição do pampa, que se transformaria nas águas em fúria que experimentei no primeiro dia da praia. A paisagem, entretanto, continuava ao meu lado como um cão absorto. O tempo aprontara sua armadilha. Nela me enredei, sem possibilidade de trégua.

Quieto, coração, que já provaste a eternidade.

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