28 de janeiro de 2007

O QUE MOLHA E NÃO É ÁGUA


Nei Duclós

Vida vidinha é assim: há tanto Deus, que Deus transborda. Acaba virando fonte, que são as chances oferecidas por Adélia Prado à visita do gentio (os que não fazem parte do seu universo). O leitor vai da sala para o fogão, do quintal para o enterro, da reza para a imprecação. É a comunhão com criaturas que se fartam de religião e vivem na solidão de seus pecados, indizíveis. Adélia Prado rompeu esse silêncio com sua poesia única, que impregnou a literatura do que mais lhe faltava: a mulher mesmo, e não o apêndice lírico do devaneio noturno. Hoje fica fácil enxergar o que uma brasileira sabe sobre Deus e o mundo, já lemos e relemos Adélia Prado. É o que se pode dizer uma poesia clássica: voltamos a ela sempre que perdemos o rumo da nacionalidade. A poeta nos traz de volta ao Brasil profundo, não o que a geografia ou a História mostra, mas o que um corpo sábio experimenta.


Esse humano tão real parece inventado. Como pode uma ditadura tão longa acabar com a visita do casal de compadres, cercado de filhos, aos domingos? Não foi o tempo que fez esse estrago, foi a política e sua companheira sinistra, a economia. Arrebentaram com a família, não porque ela tinha mesmo que morrer devido às modernidades, mas porque foi feito tudo de propósito. Para começar, não há mais calçadas. Como crianças poderiam brincar em calçadas em visitas dominicais se tudo é tomado pela sujeira, o barulho e a violência? Também as casas que duravam gerações sumiram. Hoje é feio imaginar uma casa assim tão antiga, a não ser que seja para a exibir recauchutada em revista de moda como exemplo de reciclagem politicamente correta.


Casas antigas, daquelas que tinham retratos ovais de homens e mulheres de rostos sérios, de bebês sorridentes com topete em cima, são difíceis de encontrar. Não é saudade que nos move em direção a esse país desinventado, mas desconforto. Destruímos o país mas ficaram as ruínas, onde está a poeta com sua palavra no ermo. Seu tema seriam as inúteis e sagradas paisagens pastoris e de subúrbio que cercam as pessoas de cama, mesa e fogão? Difícil enquadrar a poeta, que roda pela palavra com a circunavegação das sílabas em forma perfeita ("a poesia é pura compaixão"), a palavra sem a beleza compactuada, maravilhosa como a cigarra que se gruda na árvore e tem vidro moído no peito. Tudo isso ela faz sem pose, sem forçar a barra. Tudo soa natural porque há um rio profundo nesse encontro primal entre a criadora e sua obra.


O que molha e não é água é o amor, que ela coloca no altar, acima de Deus, que pode se manifestar na cozinha. O amor é o luxo que desembesta a vidinha. O sentimento faz a vida ter sentido e mesmo que tudo seja só rotina, quando há amor, mesmo esmigalhado por manifestações externas brutas, há esperança e eternidade. Um recado simples proporcionado pela intensa elaboração do ser antes da poesia, do talento antes de escolher o poema, da inventora antes de saber-se escritora ou imaginar-se real com o livro posto.


Vida doida, de Adélia Prado (Alegoria, 78 pgs.), com ilustrações de Ana Viola, que faz parte da coleção Palavra e Arte, é sobre a alegria convivendo com a dor: doida, doída. É uma antologia que nos resgata o melhor da poeta e abre as portas para uma visita aos seus supremos redutos.

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