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4 de julho de 2006
O VAZIO DO TEMPO
Agora que o circo pegou fogo, que os palhaços atacaram a platéia, que os trapezistas despencaram, que os leões saíram das jaulas, que os engolidores de fogo se afogaram, que a bailarina voou pela fenda da lona, que os cavalos dispararam cidade afora; agora que os traidores se locupletaram numa orgia de sangue contra a pátria enlameada; que vimos personalidade públicas se ajoelharem diante de ídolos estrangeiros de barro; que fomos obrigados a engolir o ódio destilado contra a nação e seu povo; que o próprio povo se insurge contra si mesmo, não sabendo que essa revolta é alimentada pela bandidagem no poder; agora que voltamos a ser o que somos, nada, e que estamos diante da tempo esvaziado de seus rituais, é o momento de ver os filmes de resgate inútil do passado, todos inspirados em Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, a obra-prima que não teme a morte, porque no coche negro o pesadelo é o humano em queda, e o humano é o que temos, e tudo o mais é representação e sono.
Como Bill Murray em Don, que recosta no avião de sua viagem impossível e sonha com as mulheres que não acha, com o filho perdido, a areia das horas se esvaindo em dolorosa constatação de que tudo não valeu a pena. Ter sido bem sucedido na venda de computadores, ser vizinho de um bom amigo, resgatar lembranças de belas mulheres, mexer no coração das jovens, tudo jaz num sofá de couro, o olhar em direção ao nada. O movimento da câmara ao seu redor, na cena final, é a busca de uma descendência, a possibilidade de alguém herdar sua carne e seu sangue, mas esse aceno poderá vencer a sua depressão?
Jack Nicholson em About Schimidt é o velho que não suporta o genro, o viúvo arrependido de não ter amado a mulher, o aposentado escorraçado pela nova geração, o viajante que a esmo procura o que jamais vai achar: um sentido para sua existência, que só se justifica nas confissões para um menino africano pobre que recebe dele uma pequena mesada. O choro convulso de Jack Nicholson no final é o sinal de vida que ele deixa no espectador irado com sua magnífica performance, ele que é um dos grandes e sabe descer ao que há de mais torpe e mesquinho na cidadania amaldiçoada pelo tempo.
Agora que somos obrigados a aturar a revelação de que França e Brasil somam seis campeonatos mundiais (essa ninguém me contou, eu ouvi), que os locutores se esporram escandindo as sílabas dos países ricos classificados, agora que os oportunistas vestem a camisa que pertence aos outros povos, agora que vemos mais uma vez os brasileiros fugirem de sua condição de brasileiros, é hora de ver Munique, a tempestade visual e política de um Steve Spielberg obrigatório, um cineasta que deixa um legado poderoso, tanto nos erros quanto nos acertos. Munique é um filme que versa sobre a pátria, a casa para onde as pessoas voltam, mesmo aqueles que se julgam internacionalistas, a pátria que falta a palestinos e faltava aos judeus.
É de ver, e se assustar, o pequeno diabo com seu cachorro policial. Ele vende informações, e trabalha para o grande diabo chamado Papa, que vive num paraíso familiar, cheio de crianças, num cerco idêntico ao de Anthony Perkins em o Processo, de Welles/Kafka. Munique coloca o sinal da cruz na vilania e tenta entender o terrorismo árabe ou judeu, e explode em quase três horas de um roteiro com o toque de Tony Kushner. Esse filme, que também resgata o passado, enche de sangue o caminho percorrido pelo tempo. No fundo, é a brutalidade acumulada que nos deixa assim, inermes diante do massacre.
Agora que nada somos nem nada temos, essa é a hora de ver, de enxergar mais, para poder falar. Ou nos calaremos concordando com tudo o que dizem ao nosso redor?
RETORNO - Todas as imagens, claro, se referem aos filmes citados. Inclusive a maior, que abre esta edição, que é de Morangos Silvestres, de Bergman.
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