21 de abril de 2006

OS LADRÕES DA ALMA






Nei Duclós

Uma redação é feita de fotógrafos, que sentam sobre as mesas afastando teclados, a querer provar que nosso ofício é moleza, basta ficar na cozinha a batucar o que nos vem na telha. Por absoluto desprezo ao mundo das letras é que eles jamais identificam as fotos. Gostam mesmo é de fazer corpo mole, dizer que tudo já existe no arquivo, nas agências, nos bancos de dados. E que pauta boa é a que inclui viagem e diárias e que no fundo esta é uma vida provisória e estão mesmo é montando um restaurante na praia.

Eles chegam com seus coletes à prova de bala, protuberâncias suspeitas, guarda-chuvas portáteis de alumínio, lentes e refletores, e sentem falta dos tubinhos de plástico preto com tampa, que não guardavam apenas filmes. Andam meio de lado, porque precisam de um arsenal para produzir essas coisas que tomam conta do espaço destinado às letrinhas. Com a pandemia da imagem permitida pelas câmaras digitais, eles acabaram cumprindo suas ameaças e hoje estão oficialmente em frente ao mar, mas basta chegar num restaurante lotado numa das capitais e lá encontramos o Leonid Strelaiev falando sobre mais um megaprojeto. Já nos acostumamos imaginá-los perdidos nos ermos do sossego quando irrompe na revista o Olívio Lamas, indo direto para o editor de arte, que tem a metade da nossa idade.

Conseguimos um livro perdido na poeira e lá está a foto de Assis Hoffmann estirado no chão, batido pela repressão que acabou com a Ultima Hora, como narra Jefferson Barros em Golpe mata jornal (Já editores). Estávamos acostumados a vê-los nos laboratórios, mas como são feras, jamais se restringiram ao mundo que escolheram. Queríamos confiná-los em espaços reduzidos, impedir que abrissem demais as fotos, mas como são completamente loucos, chegam diante do diretor de redação com um clic que demole dez quilômetros de texto. Os fotógrafos sobram e tomam conta do noticiário com o olho doentio que enxerga o que jamais notamos ao vivo, e que depois nos impactam por uma verdade que precisava deles para ser notada.

A realidade não precisa de nós, os escribas, precisa dos fotógrafos. Eles têm mais poder do que um presidente com acesso aos segredos nucleares. Por isso foram extintos em sua maioria, aposentados à força, empurrados para os relatórios de luxo, para os patrocínios ambientais e industriais. Eles eram presença excessiva nas redações, que os expulsaram. Ao jogá-los fora, o que entendíamos por redação foi junto. Hoje os fotógrafos sobrevivem como um punhado de bravos, porque não existem mais aqueles departamentos com cheiro de química e vazios de fotógrafos, que se aglomeravam todos ao redor dos repórteres, editores e principalmente, das mãos femininas que possuíam, segundo a visão daqueles canalhas, mais talento do que qualquer estrela da equipe.

O fotógrafo é um inconformado com a visão rasteira que temos da sua luta, por isso surgem cobertos de couro preto como Ricardo Chaves, motoqueiro explícito, que rebatia as observações maldosas sobre seu peso dizendo que tinha outro por dentro. Era a mais pura verdade. Eles eram outros, nós é que insistíamos em vê-los como os mesmos de sempre. E não bastava um, havia o amigo, tão bom ou melhor do que eles. Kadão Chaves tinha trazido para São Paulo esse outro talento avassalador e, por merecimento, eterno vencedor de concursos, o Antonio Gaudério. Falei para o Gaudério não beber água da torneira aqui em São Paulo, como ele fazia em Santiago, dizia Kadão. Por afinidade e admiração da minha parte, me aproximei de Gaudério que fez o impossível: conseguiu um dia colocar o açougueiro da favela no teto do seu estabelecimento sobraçando carnes e sorrindo para a câmara. Era uma matéria de negócios na favela, um assunto pioneiro que não mereceu destaque na época, mas certamente influiu pautas posteriores, pois o tema começou a ficar recorrente.

Se o fotógrafo é duro com seus pares, e pior ainda com os repórteres, nada pode ser comparado ao que fazem com as pobres fontes. Saímos de uma reportagem na Senhor e Helio Campos Mello bateu a mão na testa: Vamos voltar, disse ele. Para quê? perguntei. Esqueci de fazer o editor de Bíblias se ajoelhar. Foi difícil convencê-lo de que já tinha judiado bastante do abnegado entrevistado, que assumira todas as poses imaginadas e ditadas pelo malfeitor. Numa noite, o Ayrton de Magalhães cercou uma autoridade numa recepção, ao que foi impedido pelos guarda-costas, que gritavam: "O ministro não, o ministro não!". Ayrton tinha feito fama como o grande fotógrafo dos bastidores do submundo, se isso pode ser imaginado. Foi o primeiro a retratar os travestis de São Paulo, que o tinham como fotógrafo oficial. Ayrton ainda foi o autor da célebre foto de Marilia Pêra dando de mamar a Fernando Ramos da Silva, o Pixote, pois foi still do filme de Hector Babenco. Quando se aproximava de alguém, todos sabiam do que era capaz.

Mais tarde, achando já que a espécie tinha sido extinta, conheci o Hélcio Toth, que se celebrizou ao fotografar a cadeirada de um popstar na platéia que se aglomerava embaixo da janela do seu hotel. Hélcio Toth, quando mira o alvo, faz os edifícios perderem a forma, e os cachorros tornam-se estátuas sagradas em pedestais de xadrez. Por motivos pessoais, vive próximo a Regina Agrella, que nos deslumbra com pássaros transparentes bebendo de fontes invisíveis e traz para São Paulo paisagens que o interior esconde, mesmo para quem vive nele ou costuma viajar por suas paragens. Também me defrontei com Marcelo Min, que apelidei de O Olhar Absoluto. Thais Rebello, que por vinte anos foi diretora de arte da Editora Três, costuma dizer que Min não erra clic e dá sempre vontade de publicar tudo o que ele traz com seu jeito zen e sua presença implacável, que lhe rendeu uma surra de um segurança vizinho de Paulo Maluf.

A raça não some porque não se rende. Quando menos se espera, lá surgem eles aumentando a lista impossível de ser citada na íntegra. Com nome de profissional da Reuters, Tomás May é capaz de debulhar um assunto em cem mil fotos, dilacerando a escolha na hora de uma capa. Eles jogam pesado e não admitem rejeição de nenhuma espécie. Se sentem o centro do noticiário e acreditam na máxima de que os pixels superam o alfabeto. E jamais perdem a desfaçatez de ciscar no nosso terreiro, o que é uma experiência sempre enriquecedora.

Ouvir Edu Simões falar sobre literatura, por exemplo, ou Ayrton de Magalhães contar sua viagem à América espanhola, nos faz ver que algo se perde nessa divisão de tarefas em letras e imagens. Os fotógrafos optaram pela imagem porque alguém precisava fazer o serviço. No fundo, gostariam mesmo é de nos provar que as palavras não são nossa exclusividade e que podem fazer com elas o que costumam aprontar visualmente. Só não gostariam de ficar suando em coisas obsoletas como um lead. Contariam sua versão do jeito que gostam: com aquele ar superior dos artistas bem resolvidos, mal sabendo eles que nós é que somos os reis da cocada preta, nós, os tecedores de leituras, nós, os retratistas dos fatos. Esse é um conflito que se resolve numa viagem, com boas diárias, como as de antigamente. É quando temos a chance de nos afastar das redações, que nos confinam, e nos aproximar da nossa humanidade completa, que é invisível a olho nu, mas não para essas pessoas que empunham a câmara como quem roubam a alma.

RETORNO - 1. Close clássico de uma rosa vermelha, de autoria de Regina Agrella, citada nesta crônica publicada ontem no espaço Literário do Comunique-se. 2. Corrijo aqui o nome do Tomás May, que saiu Thomas, por absoluta distração do memorialista.

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