15 de janeiro de 2006

BERTOLUCCI: A QUEDA INVADE O PARAÍSO





Bernardo Bertolucci é a perversão que se instaura como arte, é a Queda que senta sem ser convidada numa poltrona do Paraíso, é o sadismo como única representação humana, é uma traição que se enxerga como cânone. Ele inventou a não humanidade de Marlon Brando para definir a falta de rosto do cidadão do mundo, o horror que a imaginação inventa para revelar a caratonha urbana do pesadelo anti-familiar. Ele tortura John Malkovitch - essa arrogância de boquitas túmidas, esse indiferente megalomaníaco, esse carisma torpe - pelo deserto de lua lilás, de areia lunar, de por-de- sol de fim de mundo. Vai nos braços do gênio Storaro, que lhe deu um universo paralelo, capaz de identificá-lo, com seus chapéus de Dick Tracy a la Andy Warhol, suas gabardines sem Bogart, seus biotipos de cera por cenários de uma guerra estética, sem sentido, perdida antes de ser deflagrada.

Bertolucci é capaz de ensinar imperador chinês a usar o vaso, só pelo prazer de nos desviar da rota, de transformar manteiga em debate, de usar Kurosawa e William Wyler no último imperador só para poder brincar de teatro de marionetes, onde sua especialidade são os fundos de pano hipercoloridos, que voam a esmo pelo ar do cinema enfim perdido de suas origens. Bernardo é mau porque se vinga, usa o dinheiro a rodo para lambuzar de sangue menstrual a cara dos jovens atores no seu filme quase recente sobre a descoberta do cinema em Paris.

Ele jamais chegará à genialidade que reporta, de Fuller a Nick Ray, portanto lhe resta a memória plena de mentira, o escancaramento da sua incompatibilidade com o grande cinema. Bertolucci é a oportunidade que os ressentidos têm de tentar a genialidade, por isso seu cinema não conforta, suas histórias não levam a nada, seu lance maior é a mistificação fotográfica, sua loucura é mostrar aos pobres mortais que uma vida hedionda medra perto deles e que jamais atingirão esse plano, pois a elite verdadeira deixa a todos de olhos vendados, como ensinou Kubrick no seu filme final.

Como ele consegue impressionar os que lhe são idênticos, pois sobra gente que jamais foram possuídos pelos deuses que precisam entender o gênio que lhes escapa, Bernardo faz um sucesso razoável na mídia ávida por grandes cineastas. Mas não existem mais os kurosawas, então Bertolucci se destaca num lixão de tarantinos, com seu toque de maestro, sua contrafação de Visconti, sua incompatibilidade com Fellini, seu namoro com o impressionismo, seus afrescos em murais gigantescos de uma capital inexistente, onde ele reina, com suas crianças que se masturbam de verdade em frente às câmaras, como se o cinema de vanguarda tivesse nascido do festim e não da reflexão e da denúncia.

Por ser essa mistificação, Bertolucci abriu as comportas para que os medíocres pudessem posar de autores. Mas ele ficou à parte do entulho que permitiu existir.

Tornou-se cult pela insistência, memorável por ter dado o recado mais direto possível numa época de mudanças profundas, por ter desprezado o que pensavam ser real e por ter dividido com a equipe o cinema que conseguiu fazer, nem tão importante quanto pensam seus admiradores, nem tão hediondo quanto pensam seus detratores, nem tão genial como ele gostaria que fosse. Mas igualmente vivo, apesar dessa paisagem morta. Mas igualmente forte, apesar dessa fraqueza de caráter. Mas igualmente fundo diante da imbecilidade que tomou conta da sétima arte.(Nei Duclós)

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