9 de julho de 2005

INVENTÁRIO DO BRASIL PROFUNDO




A matéria bruta de uma nação que voltou as costas contra si mesma na recente obra poética de três autores do Sul do país (Resenha publicada neste sábado no caderno de Cultura, do Diário Catarinense).

(Leia abaixo em Retorno: Links importantes).

Nei Duclós

O mapa do Brasil profundo inclui Livramento e Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, e Bela Vista do Paraíso, no Paraná. Nestas cidades, três crianças que cresceram sob a sombra da ditadura tornaram-se escritores bem-sucedidos, com significativa obra publicada e, na maioria das vezes, premiada. No momento em que eles colocam na praça seus mais recentes lançamentos, o conteúdo poderia sugerir festa e celebração, pois se trata de poesia brasileira bem resolvida, pertencente a uma linhagem sólida da cultura do país. Mas a formação fala mais fundo e impõe-se a trágica sobriedade do que é escrito com absoluta transparência. Os livros do paranaense Miguel Sanches Neto (autor de Venho de um país obscuro) e dos dois gaúchos, o fronteirista Paulo Bentancur (Bodas de osso) e o caxiense Fabrício Carpinejar (Como no céu e Livro de visitas), todos da Bertrand Brasil, foram esculpidos com a matéria bruta da nação que voltou as costas para si mesma.

Mesmo sendo tão explícita essa sintonia entre a situação do país e a poesia, os três autores jamais deixam de lado as lições aprendidas nas últimas décadas, especialmente a de Drummond, em que a penetração surda no reino das palavras é decisiva num ofício tentado pelos temas da vida escassa. Eles encarnam esse duro aprendizado diferenciando-se do poema confinado numa prisão de ausências. Existem leis que proíbem o poema ser de vanguarda, ou ideológico, ou confessional, pois tudo isso pertenceria ao passado. O que é moda, hoje, é o verso desvinculado de qualquer realidade, para assim assumir seu único papel ainda tolerado, o de redesenhar o perfil de cada palavra, virá-la pelo avesso e combiná-la de todas as formas.

Mas esse é um destino que, paradoxalmente, pertence ao território negado (o da política), pois uma literatura que reivindica uma existência autóctone, sem nenhuma relação com a vida social e é considerada a única possível, pertence a um país que entregou sua soberania. Qualquer movimento contra essa medida provisória corre o risco de ser ignorada. O silêncio, que monta guarda em torno da poesia que não participa dessa casca flexível de aparências, é a mesma sentinela que define os papéis sociais no Brasil, onde não há distribuição de renda porque "não dá tempo", como notou esses dias um passageiro de ônibus.

Longe da falsa contradição entre poesia e prosa (tão insistentemente lembrada quando se trata de poesia não enquadrada nas firulas teóricas sobre o verso), os três poetas trabalham fora dos projetos prontos para a poesia, que, em tese, deveria pular qualquer muro, a começar pelo mais importante, o do sentido (a compreensão compartilhada). Aqui ocorre o contrário. Não há pudor em se falar com todas as letras, como em Miguel Sanches Neto: "Venho de um país obscuro/ de uma infância só muros,/ meu pai foi leve lembrança,/ que me marcou pela ausência,/ e enquanto caminhava pelas ruas do tempo mais triste da ditadura/ ia perdendo meu país como quem deixa uma moeda cair".

O poeta perdeu o país como quem perde o pai. Foi formado num território de miséria, autoritarismo, marginalidade (a nação sem moeda). O dinheiro que falta na família sobra no bordel (a festa dos recursos confiscados da população) e de lá pinga na mesa onde o poeta cresce: a mãe costurava para as putas, a avó lavava roupa para fora, o padrasto vendia para os pobres e todos eram analfabetos. Ao herdar uma cultura ágrafa, feita de restos, o poeta recolhe o que é jogado no lixo. Nas suas palavras, a escola era "um lugar de castigo, onde só o silêncio era exigido". Prisioneiro dessas decisões postas como definitivas, ele confronta sua herança: o nome que veio de uma ancestralidade aos pedaços, jornais velhos com notícias datadas, a casa que se perdeu para sempre e jamais foi substituída. Gerado pelo Brasil da ditadura (pois esse é o nome do país obscuro), o poeta curva-se diante da sua herança e nela enxerga uma réstia de luz na varanda, um hotel em ruínas, uma avó que serve café depois de sair por alguns momentos do retrato da sala.

Ele desistiu de achar, mas não da procura. As relações humanas nesse mundo sombrio (o casamento, a fraternidade, a descendência, a filiação) estão contaminadas de impossibilidades. Nada pode a memória na sua luta contra a morte. Mas, descobre o poeta, nada poderá a morte quando a memória for plena. Por isso ele insiste, sem fazer barulho. Seu objetivo é transformar-se em raiz, longe do inferno das superficialidades, e entregar-se sem resistência ao esquartejamento de si. Para definir sua missão, que aparentemente não existe, ele procura desvestir o que a ditadura fez com outro passado, o de Aleijadinho. Numa série de poemas finais, revela o que um criador, num país obscuro, é capaz de fazer, mesmo que sua arte seja soterrada pela mesmice burocrática e pela pompa das aparências. Ele vê nas esculturas de Aleijadinho o mesmo material da própria maldição.

O país que assombra Miguel Sanches Neto é o mesmo deserto de Paulo Bentancur, onde o poema é o último reduto de uma fuga. Quando a nação se rende e se esvai, e no lugar dela é colocada uma representação criminosa, reiterada pela imagem vendida no mercado, a palavra que um dia fundou a nacionalidade perde o sentido. Fica à deriva e é dada como morta. Possui apenas a memória de algo que não lhe pertence, mas que ele resgata como tesouro pessoal. O poeta encarna essa perdição numa encruzilhada: a esperança de água sob "um céu que jamais ilude", os olhos desprotegidos diante da tempestade, o dia na prateleira. Nesse sufoco, não há lugar para nada: "Isto não é um poema, não é mesmo uma confissão, não é sequer o olhar turvo de um espírito sem a luz de quem, ao lê-lo, poderá ver mais que um poema. Ou menos".

Dividido em três partes, o livro de Paulo Bentancur aborda primeiro a infância, depois o próprio ofício, e em seguida a permanência (ou a falta dela) no casamento límpido entre o desaparecimento e a transparência. A aparente submissão ao que a vida impõe é uma insurreição que o poema joga como lava na borda de um monturo. A poesia, então, é o reflexo da mão sobre o papel, do gesto sobre a palavra, da vida sobre que precisa ser dito. Paulo enxerga as minúcias de um país sem limites, e entende pelo detalhe o que nos confunde pelo conjunto. É complicado definir uma identidade num lugar que aposta na dispersão e onde a realidade econômica e política jogou uma sombra pesada sobre o significado das palavras.

Nessa arena, o poeta ou sucum-be à armadura dos significados ou pula no abismo.

Fabrício Carpinejar escolhe um momento posterior à queda. Ele cuida que o espólio do sótão seja a arqueologia que reinventa os cômodos ainda vivos. Sua poesia não busca a praça usada pela convivência em conflito, mas a cruza de uma só vez para lamentar a travessia sem sentido. A biografia dessas ruínas veste como um terno em dia de missa, mas suja os sapatos polidos para participar da briga no quintal barrento da igreja. A infância que desponta é uma crueldade, e a vida conjugal é um cruzamento de merendas jogadas como arsenais de uma batalha perdida. A precisão com que demole cada momento da vida vista pela normalidade (essa evolução temporal de biologias datadas) serve de modelo para um brinquedo cruel: o de desarmar o relógio precioso da família para expor-lhe as vísceras e assim denunciar a inexistência de mecanismos.

É arriscado esse jogo porque as palavras parecem dançar ao sabor de cada verso, como se nada tivessem com o poeta, que sopra na rua ainda vazia, mas potencialmente sedutora para a alma criança dos leitores. É apenas um jogo, dirão as autoridades, e se ocuparão de outras coisas, deixando que as sobras da família, os loucos, os agregados, as velhas tias, as crianças esfoladas se reúnam para seguir a pista do som que vem de fora do círculo onde todos foram encarcerados.

Há então uma anticelebração, já que o poeta é o primeiro a apontar, em si mesmo, a inapetência para explicar a sedução da melodia. Ele atrai para si a gargalhada geral para que não ouçam seu verdadeiro intento: o de jogar todo mundo nas águas do rio, para que nela afoguem os detritos das suas linguagens. É quando o leitor se revolta contra as regras impostas do jogo. Não era o circo que estava passando? Não eram as celebridades que acenavam? Não era a fama que exibia sua fortuna? Ao nosso redor, escombros de coisas não nomeadas nos rondam com seu ranger de dentes. Fomos enganados e o poeta fecha a porta na nossa cara, como quem faz uma visita. Boa-noite, diz ele, e o sol sobe no horizonte como um cachorro pula do chão para a janela, quando busca comida no lugar onde havia apenas papel sujo (a pilha de significados acumulada pelo uso).

Sorte de quem está na rua, que vê em plena liberdade as folhas soltas que tinham nascido para serem grampeadas. É o momento, então, de cada passante ser reconduzido ao primeiro ato de criação, o de dar nome ao que é de novo revelado. O país ganha a chance de um reencontro, mas isso depende de outras lutas. Às vezes, o destino da nação, que tanto pode ser a língua, como a infância, ou a família, descobre o quanto deve à poesia.

RETORNO - 1. Por falar em Brasil profundo, nada como um texto sobre a falta de liberdade de expressão na situação atual: Urariano Mota explica o que ocorre na imprensa em Pernambuco numa descrição que é um assombro de clareza e coragem e que cabe direitinho em qualquer grotão (central ou periférico) da ditadura civil. 2. Rodrigo Schwarz lança nesta terça-feira, dia 12, às 19 horas, na Livraria Catarinense, no Beiramar Shopping, em Florianópolis, seu romance de estréia A Ilha dos Cães (Bertrand Brasil). Estarei lá, para conhecer pessoalmente o autor e ganhar seu autógrafo. 3. Jésus Gómez abre o La Insignia de hoje, segunda-feira, dia 11, com meu texto Cinco Vezes Tarso de Castro, que serviu de subsídio para tese de mestrado na Unviersidade de Passo Fundo e de inspiração para uma biografia de Tarso, de autoria de Tom Cardoso, que será lançada pela Editora Planeta. Li um capítulo do livro e posso garantir: é obra de primeira linha, totalmente obrigatória. Tom é filho de Jary Cardoso, que um dia deverá lançar a antologia do seu fundamental trabalho jornalístico. Demorou, Jary. Os novos jornalistas precisam saber o que nossa geração aprontou nos veículos deste país sem fim. E nós, os veteranos, precisamos relembrar o que fizemos na imprensa brasileira. Por muitos anos, lia Jary e comentava: isso dá um livro. E o melhor é que Jary continua no front, no jornalismo de Salvador.

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