Incentivar a saudade dos anos 60 é uma das muitas formas de enterrar a época em que o enfrentamento coletivo contra a ditadura do Império ( que se desdobrava planetariamente, do Vietnã a Brasília) lançou os fundamentos de uma nova civilização. Esse projeto não fazia parte da oposição conservadora de esquerda, que no fundo é o clone do Mesmo, como provam os governos socialistas europeus e o governo Lula. Os anos 60 são muito mais perigosos do que qualquer guerrilha, porque criou a plataforma completa de uma alternativa real ao horror da direita. Caíram de pau nesse projeto e vivemos o tempo em que a reação brutal ao esboço da nova era tornou-se muito mais sofisticada e profunda. A principal arma dessa desconstrução da utopia é desmoralizar a revolução da qual fizemos parte, nós daquele geração privilegiada, que incorporou completamente o sopro de luz que não foi apenas sonho, mas a nossa carne. Matar quem levantou a bandeira mais alto foi só um detalhe. O mais importante veio depois, ou seja, agora: repetir à exaustão que aquilo é passado, que jamais voltará. Só que os anos 60 são o futuro e por isso não podem fazer parte da saudade.
ABC - O novo aluno de Letras da USP, daniduc, extrapola e nos envia, aqui para o ermo do Capivari, o álbum completo, em MP3, do Submarino Amarelo. Todos juntos agora: a, b, c,d; um, dois, três, quatro; nada do que você vê será impedido de mostrar, nada do que você quer deixará de ser feito, é fá-cil. It?s easy: os Beatles não são os anos 60, apenas fazem parte dele. Sobrevivem como o iceberg maior, integralmente à tona, navegando no mar dos buracos. Eles respondiam ao clamor das ruas, eles, como todos nós, éramos o que um dia seremos. Lennon dizia para um admirador pirado: faça suas canções, não perca tempo com as nossas. Assuma, porra, senão vão nos matar. Lennon viu que a barra ficou preta e lançou a frase que todos repetem à exaustão. Mas no Submarino Amarelo tem tudo: o anúncio estridente dos navios transformado em música, a música incidental da navegação no Mistério, a constatação de que tudo é demais, ou sejam, colocamos o pé na Maravilha e sossega que a viagem é sem fim. Cante conosco, crie sua vida, saia do cerco, rompa. Essa é a fonte da alegria, o de criar sempre, o de reiventar-se, o de construir o sossego por meio de uma luta que mexe com teu corpo e teu coração. Parece fácil entender, mas é complicado. Não se trata de algo que mudou o mundo, já que o mundo continuou igual, ou seja, a mesma choldra de sempre, cada vez pior. Não tem nada a ver com a força do rock transformando nerds em muito loucos, como dizem sempre os documentários execráveis. Trata-se de um fundamento, de um mapa, de uma criação gigantesca de uma enorme população, da qual Woodstock era só um ponto. Foi um exercício de imaginação que deu certo por alguns anos em uma parte da humanidade e quase foi vitorioso. Perdeu a batalha, mas não a guerra.
CABEÇA - Para mim, há muitos anos 60. Primeiro, nossa mudança da grande casa da esquina para o subúrbio, quando descemos alguns degraus da escala social. Depois, o golpe de estado de 64, que me tirou todo o gosto de ficar em Uruguaiana. E terceiro, Porto Alegre, a cidade da cultura, onde entrei menino e saí guerreiro. Assumir os anos 60, naquela época, equivalia uma pena de morte. Não era como hoje, em que tudo é badalado na televisão mesquinha e comprada. Não se tratava de sacudir os braços e a cabeça ou simplesmente consumir drogas. Era enfrentar o ódio de quem nos via quebrando todas as regras, em todos os lugares. O ódio profundo daqueles olhares, que cercaram minha juventude de desespero. Era viver perigosamente: expor poema na praça, usar qualquer roupa, jamais pentear o cabelo, sorrir para todos, fazer a cabeça com a música tratada como mero produto comercial. Era realmente cultura e filosofia. A última fase dos 60 para mim foi a visita que fizemos ao Rio de Janeiro em 1969, quando nos lembraram que dez anos antes o verso chega de saudade tinha sido proferido como uma revelação. Éramos o futuro, e sempre seremos. All together now.
ROTEIRO - O que são hoje os anos 60? Um roteiro, um sinal. Youssuf, saia dessa mesquita e cante como Cat Stevens. Desça pela Internet todos aqueles sons, inigualáveis e jamais superados. Ninguém tocará como Hendrix, ninguém cantará como Janis. Não se trata de saudade, mas de constatação. Não se trata de ficar preso ao passado, mas de enxergar o óbvio: bombardearam a revolução com todas as armas e agora repetem no Iraque a brutalidade do Vietnã. O Brasil continua preso pelo cangote ao arrocho financeiro comandado pelos Estados Unidos, como sempre foi o projeto da ditadura. Quem é saudosista? O conservadorismo. A revolução não sente saudade. A luta é com qualquer palavra, é com a palavra carregada pela poesia, é com a poesia feito flecha e não esse mar de trocadilhos dos poetastros trocaletras. É fácil fazer, basta querer. É difícil entender, porque sempre existe alguém para sorrir de lado, como um palhaço. Tem saudade da juventude, é normal, é normal, diz o abombado. Quem falou em juventude? Nasci com a eternidade.
RETORNO - Um verso bem anos 60 corre pela internet: Nenhuma pessoa é lugar de repouso, do meu livro Outubro, poema Salvação. Citado pela escritora Martha Medeiros e reproduzido em inúmeros blogs. É a segunda vez que Martha invoca o verso, defendendo a idéia de que encontrar a pessoa certa é, sim, um bom lugar de repouso. Enviei um e-mail para ela argumentando que o poema fala em navegar até onde dá, ser livre para o que pintar. Viver até o limite e encontrar, talvez, a pessoa que sempre esteve ao seu lado. Não deixar-se levar pela modorra no relacionamento e não, como ela sugeriu, assumir a irresponsabilidade no amor, fazendo rodízios de encontros amorosos. Mas a citação de Martha valeu. Raramente me citam. Gentil como sempre, ela me respondeu dizendo que não citou o poema todo para não perder o foco do assunto.
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