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26 de março de 2005
RECEITA PARA CHOCOLATE E VINHO
É simples: basta uma caixa velha de sapatos. Você recorta esse retângulo frágil ao meio com a tesoura, justapõe as metades e cerca as paredes do cubo que resulta dessa operação com papel celofane brilhante, finamente trabalhado, e colocado graças à força do grude, ou seja, farinha de trigo misturado com água. Finamente era modo de dizer. Bastava dar uns retalhos para inventar as franjas, picotar algum papel colorido para imitar a palha do ninho. A alça era mais complicada. Poderia ser também de papelão, mas o resultado ficava comprometido pela fragilidade. O certo era torcer um arame e também recobrir o arco com crepom colorido. Mas o sensacional não era o cesto, mas sim aguardar a chegada do Coelho. Colocávamos tudo na sala, como no Natal e varávamos a madrugada esperando. Mas, cansados, dormíamos antes que o milagre acontecesse. Só no dia seguinte, ele estava lá, explícito em enormes chocolates de farda vermelha com cintas amarelo ouro. Nunca escondemos cesto algum, como é costume, a não ser uma vez, em que, claro, fui o último a descobrir onde estava o meu (bem no meio do galpão, embaixo de uma caixa de madeira). Talvez tenha sido aí minha última Páscoa.
VINHOS - Hoje a infância faz parte do mundo adulto, ou vice-versa. Crianças tentam falar como gente grande, principalmente nos comerciais. Quando eu era muito pequeno, tínhamos nosso mundo à parte. Construímos um rancho de tábua no fundo do quintal, o qual apelidamos de CTG (Centro de Tradições Gaúchas) Os Gaudérios. Lá fazíamos churrascos no inverno, aos domingos, às sete da manhã, depois de acompanharmos a mãe na missa das seis (quando ainda estava muito escuro). O pai cedia uma de suas valiosas garrafas do importado alemão Liebfraumilk (Leite de Mulher Amada, como fazia questão de traduzir). Os adultos eram convidados e adoravam. Cada um tomava um pouco do vinho. Frio de rachar, carne assada com vinho mal nascia o sol de domingo. Isso realmente aconteceu? A proximidade com a Argentina nos franqueava grandes marcas, a começar pelo legítimo White Horse ( o Cavalinho Branco, claro), com gosto e cheiro de malte que nunca mais encontrei em scotch algum. Meu primeiro porre, aos 14 anos, foi em casa, com essa bebida, sorvida em altos copos de cristal com marcas das doses, que minha mãe guardava zelosamente na cristaleira. No verão, meu pai colocava a cadeira preguiçosa na calçada, o copo de Cavalinho Branco no chão (duas doses no máximo em algumas noites) e ficava tomando a fresca, sendo cumprimentado pelos passantes. Odiava bêbados. Detestava cachaça. Nos últimos dez anos de sua vida, dedicou-se ao vinho chileno, que ele definia como muito melhor do que o francês (não teve sorte, talvez, com as garrafas francesas a que teve acesso). Nas pescarias, a cerveja bem gelada era só para acompanhar o peixe frito e salgado. Acampamento era para a pesca, nunca para a bebedeira.
ALELUIA ? Só comíamos chocolate no domingo de Páscoa. O sábado era para bater no côco alheio e gritar aleluia!, brincadeira estúpida, mas tradicional na minha terra, naqueles tempos. A cabeça raspada se prestava a esse tipo de sacanagem. O cabelo era exclusividade dos adultos. Os meninos tinham a cabeça pelada, no máximo com um topete na frente, feito o Ronaldinho na última Copa. Depois cortávamos o corte reco, de soldado raso, que exibia vasta protuberância no alto da cabeça sem nenhum fio (daí vinha o tabefe dos prevalecidos, que adoravam bater nos menores). Aos 13 anos, era permitido fazer o meio-corte. Meu primeiro meio-corte (em que se deixava coberto o cocoruto e o cabelo vinha até a metade da cabeça, ou seja, o raspagem atingia até a altura das orelhas, no máximo) foi no barbeiro da esquina, ex-combatente da Segunda Guerra. Ele levantava a barra da calça e mostrava sua perna totalmente queimada por um lança-chamas no combate de Monte Castelo. Tínhamos ex-combatentes naquela época, ex-guerreiros, gente de paz que lutou no front. Era um privilégio de países soberanos e sérios. Havia orgulho nos veteranos que participaram das inúmeras guerras (1924, 1930, 1932, 1944). Jamais estudávamos qualquer uma delas. Líamos sobre os romanos e os gregos e os holandeses no Nordeste, jamais na visita do Conde D?Eu a Uruguaiana, que no seu livro Viagem ao Rio Grande do Sul (Editoras Itatiaia/USP) descreve com minúcias sua chegada ao campo de batalha, o cerco à cidade, na guerra do Paraguai, com destaque para a paisagem do Toro Passo. Nunca tínhamos lido Monteiro Lobato comentando André Rebouças, que no seu diário descreveu a tomada de Uruguaiana. Nada sabíamos de Honório de Lemos, a não ser algumas anedotas. A guerra não fazia parte dos livros que nos cercavam. Ela estava nas pessoas, nas posturas, nas narrativas. Fazemos parte dessa raça orgulhosa de leões. Quem poderá conosco? (faço aqui uma paráfrase de célebre texto de Coelho Neto ao comentar o raid sobre Copacabana pelos combatentes de 1922).
RETORNO - Neste domingo, o caderno Donna do Diário Catarinense publica minha crônica Leitura de Elevador (com belíssima ilustração de Samuel Casal), que faz parte da seleção canarinho desta minha faina diária que é escrever.
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