21 de dezembro de 2004

PAPAI NOEL VAI À PRAIA (I)


O lugar onde mora Papai Noel foi totalmente transformado pelas consultorias. Hoje é um espaço subterrâneo informatizado e asséptico, que alcançou a excelência de resultados graças à interferência do terrível Glork, o duende de orelhas em garfo, que trancafiou no porão todos os fazedores de brinquedos antigos e transformou o Pólo Norte numa central de merchandising e de uso do nome ilustre do velhinho. Glork e seus poderosos asseclas, os guarda-raios Stomps, dominam com mãos de aço temperado o que um dia foi uma bucólica fábrica de sonhos. Papai Noel vive nesse ambiente hostil, mas resguardado por sua antiga casinha, que não sofreu nenhuma mudança. É uma construção tosca de madeira, que vive fechada, cercada por um hangar de amianto luminoso. Lá, Papai Noel vive com a esposa, sempre acamada. Tem acesso a televisão a cabo, com canais que passam seus filmes favoritos, todos sobre o Natal. Dedica-se às esculturas com madeira dura, criando coisas com seu muque e pensando em como escapar dessa arapuca.

FUGA - Ele escuta os gritos vindo dos antigos companheiros, que manifestam mais desespero nesta época do ano. Lembra que foi inventado como o benfeitor das crianças pobres, as que não tinham pais para comprar brinquedos. Entrou nessa demanda explícita com seus bons sentimentos, mas o que aconteceu foi o contrário. Como não pode mais atender o pobrerio, ele assiste, calado, as consultorias fazendo charme em cima da miséria, contratando celebridades que levam ninharias para criaturas famintas em casas de taipa e barro. Tudo vira lixo já no Ano Novo e Papai Noel suspira de ansiedade. Sua única distração é criar a rena do tamanho de uma boneca, feita de angelim, a madeira mais difícil de todas. A rena tomou forma alguns dias antes do Natal e estava linda demais para ficar prisioneira no Pólo Norte. Era macia ao toque, apesar da madeira granítica. Tinha pequenos galhos sobre a cabeça bem feitinha. As patas eram uma graça e o dorso e o pescoço formavam um desenho da mais pura inspiração. A beleza do trabalho convenceu-o a dar um basta naquilo. Decidiu que sua mulher não estava tão doente assim, deixou sopa e chá prontos e mais alguns quitutes para ela ir levando a vida na sua ausência e abriu a porta. O que viu deixou-o arrasado. Havia apenas um vasto espaço vazio e lá no fundo, a nave eletromagnética que Glork usava para fazer seus contatos milionários em todas as partes do mundo. Ultimamente tinha trocado o licenciamento do nome de Papai Noel no Industão por um harém de asiáticas, pois o terrível duende estava experimentado todo o tipo de prostituição étnica. Ele usava as garotas e depois as distribuía para os Stomps, que faziam orgias diante dos envergonhados artesãos trancafiados. Sorte que Papai Noel viu que a nave estava com a escada descida, fruto do desleixo a que se entregara sua empresa depois que conseguira o título de ISO 2 milhões e cinco. Ele aproveita a deixa e some num grande cobertor de níquel pressurissado, usado para carregas prostitutas e que estava sobrando num dos compartimentos. Não demorou muito para que os bandidos assumissem o comando da nave e teclassem os movimentos que os libertariam do Pólo Norte em direção a alguma cidade devassa, onde fosse possível negociar dinheiro e mulheres. Papai Noel aproveitou para dormir e de vez em quando descobria a cabeça para vislumbrar a lua crescente.

ILHA - Desceram, claro, no Rio de Janeiro, lugar de muitas possibilidades de negócios. Aportaram numa praia inacessível para os banhistas, e que era reservada a iates fogosos e negociantes fajutos. Lá Glork e seus guarda-raios iriam encontrar distração. Mas Papai Noel não queria ficar li. Escapuliu como pôde e caminhou até a estrada. Levava no ombro um pequeno saco com sua rena favorita. Queria dar aquele presente para alguém realmente necessitado, longe dos programas de falsa caridade. Pegou carona num pau-de-arara que tinha vagas porque alguns ocupantes morreram no trajeto entre o Nordeste e o Sul. Cruzou o Rio de olhos fechados e só abriu um pouco para matar as saudades do Cristo Redentor iluminado. O caminhão caindo aos pedaços pegou a estrada novamente e dirigiu-se aos campos férteis de soja que tornaram aquela parte do País um deserto verde. Todos iam para a colheita para conseguir sobreviver mais alguns dias. Na altura de Florianópolis, ele desceu, despediu-se dos companheiros de viagem, todos esquálidos modelos de Portinari, e caminhou em direção ao norte da ilha. Lá, sua intuição lhe dizia, iria encontrar alguma criança pronta para ganhar seu presente valioso.

ANSELMO - Dirigiu-se a uma das pontas da praia de Ingleses, que abriga pequena comunidade de pescadores, que fica em frente a um bairro construído sobre as dunas e que é conhecida como favela do Siri. Papai Noel estava cansado da viagem. Arregaçou as calças e colocou os pés nas ondinhas da praia. Da areia brotou um garoto, que se dizia chamar Anselmo, e que estava entretido em levantar uma pipa que ele mesmo construíra. Enquanto fazia o brinquedo voar, olhava de lado para o velhinho muito branco, muito gordo, de escasso pescoço, com rugas profundas, cabelos ralos que lhe desciam até os ombros. Parecia um pingüim saído de uma geladeira. Não foi difícil para nenhum dos dois entrarem em contato. Começaram a falar dos ventos, que vivem fazendo travessuras naquela ilha. Comentaram então, sem entrar em detalhes técnicos nem na nomenclatura específica, em aerodinâmica, em aprender a voar, em permitir que coisas mais pesadas do que o ar flutuassem. Foi então que Papai Noel mostrou pela primeira vez a Anselmo a rena que trazia escondida no saco. Foi um deslumbramento. O pequeno objeto em forma de animal expelia algumas estrelas cadentes, que brilhavam naquele fim de tarde. Anselmo tocou no presente como se estivesse habitado por mil gaivotas mágicas. A pipa, sem atenção do menino, começou a rodopiar e a cair. Papai Noel deixou o garoto entregue ao seu embevecimento e tomou a rédea da pipa. Conseguiu mantê-la à tona e amarrou-a a uma pequena pedra que tinha na praia. As coisas começavam a acontecer de verdade.

RETORNO - Como é o segundo ano que faço isso (em 2003 foi o trepidante Trolé e o Gafanhoto Mutante), posso dizer que Papai Noel Vai à Praia faz parte de uma tradição do Diário da Fonte: o conto inédito de Natal. Amanhã, a continuação. Leiam para as crianças. Vamos ver se passo no teste.

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