20 de dezembro de 2004

A VOLTA NA QUADRA

Quarteirões em quadrados perfeitos, ruas e calçadas largas: a engenharia militar da República do Piratini engendrou a lógica na geografia urbana da minha cidade. Foi essa lógica que me salvou numa tarde sinistra do alto verão, quando eu e meu irmão Luiz Carlos enfrentamos a fúria de um morador da nossa rua, aposentado compulsoriamente devido aos nervos, e que repousava em casa saído de uma corporação das Forças Armados, acredito que tenha sido a Marinha. Nós dois não devíamos ultrapassar os cinco anos de idade. Até hoje esse acontecimento mostra-se nítido em minha memória, já que foi minha primeira experiência com o horror.

MURO - Morávamos na esquina generosa numa grande casa, dois quintais e um galpão de alvenaria nos fundos (tudo continua lá até hoje). Fomos até o meio da quadra para visitar dois moleques impossíveis, famosos por suas artimanhas e possuídos pelas mais loucas idéias predatórias. Talvez nossa visita tivesse sido incentivada por alguém que ficara encarregado de cuidar de nós (o que era sempre um transtorno) e que não nos suportava, especialmente naquele dia de verão intenso. Fomos sós até os garotos e lá ficamos a tarde toda. A ocupação não era bem uma brincadeira: era armar uma situação insuportável, pois fomos convencidos pelos anfitriões, tão minúsculos quanto nós, que aquelas grandes pedras do quintal, as quais não conseguíamos levantar sozinhos, só em duplas, deveriam ir direto para ao pátio do vizinho, o perturbado militar aposentado. O muro que separava as casas era alto e exigia um esforço tremendo dos pirralhos, completamente motivados com aquilo que parecia uma travessura, mas era uma ação perfeita que obedecia à nossa lógica irrefutável, de que o patrimônio ao lado deveria sentir a força das nossas baterias assestadas de pedras enormes. Do lado de lá, havia alarido de grande passarinhada, pois esse era o hobby do senhor imerso no seu recolhimento doentio, já que jamais ficava sossegado, estava sempre fazendo algo, vestindo calções com camiseta branca regata, dessas que se usam em quartéis. Talvez a idéia fosse destruir todos os passarinhos, pois naquela época os gorriões (ou pardais, como diziam os bundinhas da capital) faziam a festa nos cinamomos plantados em todas as ruas e nos esmerávamos em bodoques mortais, só para treinar pontaria. Não éramos flor que se cheire. E se os moleques vizinhos nos desafiavam a jogar os pedregulhos era porque isso deveria ser feito obrigatoriamente. Não poderíamos recuar. E por que os passarinhos, apesar de engaiolados, faziam tanta algazarra? Naturalmente porque estavam pedindo não nossas bodocadas comuns, mas algo mais portentoso, mais animal.

AMEAÇA - Ficamos nesse faina por horas a fio. Liberamos uma série de pedraças e jogávamos fazendo um-dois-três na hora do esforço supremo de atingir a passarinhada barulhenta. Quando já estava escurando (verbo que meu medo ágrafo inventou naquela época de férias de verão do pré-primário) ouvimos a voz do dono dos passarinhos, visivelmente contrariado com nosso abnegado trabalho. O cara era forte, moreno, usava bigode (todos usavam bigode naquela época) e postou-se na calçada com um grande facão a tiracolo, ameaçando arrancar com o fio da sua espada de São Jorge nossos trêmulos passarinhos de carne que guardávamos por baixo dos calções, no mais absoluto terror pela perspectiva de perdê-los para sempre. Mataram meus passarinhos, agora vou cortar o passarinho de vocês, dizia, decidido, a vítima inconsolável. Ele falava à meia voz, para ouvirmos, e para que ninguém mais ouvisse, pois poderia chamar a atenção pela barbaridade que cometia logo contra nós, pirralhos absolutos de côcos raspados e olhar arregalado de um medo que jamais senti mais intenso. Em meio ao susto e ao espanto, ficamos a confabular. Foi quando Luiz Carlos, futuro engenheiro e empresário precoce (organizava todas as quermesses inventadas para arranjarmos dinheiro)teve a mais brilhante das idéias : Vamos dar a volta na quadra!, disse ele, e isso me encheu de pavor.

CORRIDA - Dar a volta na quadra, coisa que nunca fizéramos antes, era a aventura mais louca que se poderia imaginar. Para mim, mas não para a lógica certeira do meu irmão, que sabia que a quadra era quadrada e que, se fôssemos em direção oposta à nossa casa, dobrando todas as esquinas, daríamos nela inapelavelmente. Para Luiz Carlos, isso era de uma transparência absoluta, tudo fazia sentido. Fugiríamos do algoz que obstava nosso passo em direção ao refúgio familiar, pois ele ficava exatamente no caminho, de plantão na calçada, andando de um lado para o outro, certo de que em algum momento (antes do por-do-sol!) teríamos que passar por ele e aí seríamos vítimas do nosso próprio crime. Luiz Carlos preparou meu espírito, pois eu nunca acreditei em lógicas matemáticas nem em geometrias. Ele tinha tudo isso no DNA e na vocação e por isso tomou a dianteira. Segui meu irmão de língua de fora, segurando o choro pois não poderia explodir antes que o plano desse certo. O algoz não foi atrás de nós e se foi, desistiu, pois, pirralhos inclementes, éramos azougues na corrida e chegamos fácil até o primeiro round, a casa da Generina! (Vi na minha visita recente a Uruguaiana que essa vasta mansão de esquina, propriedade da senhora famosa por ser muito pão dura, foi demolida). Fizemos a primeira dobra na Generina e fomos em frente. A próxima esquina estava, para nosso tamanho de pulgas, quilômetros à frente. Mas chegamos lá e dobramos novamente. Nessa altura o bairro perdia seu status de classe média-média e descia um degrau da escala social. Tudo era desconhecido. Estranhos passavam indiferentes por nós. Mas avançamos decididos até a terceira dobra, quando desembocaríamos na rua de pedra, o último round.

PICOLÉ - Sorte que aquela quadra era mais conhecida. No fim dela, onde nos encontrávamos, morava o Morocho, exímio violinista e seus dois filhos, amigos nossos. Depois, o temível Walfrido, o perigoso Rato (obrigado, Fernando, que me corrigiu) que, pelo menos, era nosso aliado. Em frente ao Rato havia a pacata Dona Noêmia, com chão batido na frente, onde morava a família dos Da Nova, exímios sambistas da escola supercampeã Os Rouxinóis. Quando passamos zunindo pelos Da Nova, palmilhamos o milagre: já era a nossa calçada! Fui porta adentro aos prantos, sentindo dor terrível no lado direito da barriga, achando que não fora a corrida que tinha me esbugalhado o corpo, mas a sobremesa ( uma marmelada!) que comera antes de fazer a visita fatídica. O escândalo estava armado, mas não lembro se contamos toda a verdade. O episódio na minha memória termina aí. Luiz Carlos provou que seu plano era infalível e com isso me salvou. O ângulo reto foi a solução encontrada pelo irmão iluminista, enquanto o emocionado barroco destruidor de aves engaioladas amargou o maior susto da sua vida. Quem mandou perseguir passarinhos, insistir em más companhias, afastar-se da casa paterna, aprontar uma cabeluda quando o mais prático seria esperarmos a carrocinha do picolé chegar, para que a festa da tarde fosse perfeita?

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