Ainda existem telegramas. Recebi um ontem, que dizia: “cheguei procure hotel centro quarto 93”. Sem assinatura. Ou melhor, com um “pseudônimo”: Argeu Teodomiro Santiago, que é o verdadeiro nome do Cabo Adão. Gelei. O misterioso militar enfim tinha dado as caras. Ia ter de me explicar. Logo agora, perto do lançamento do meu romance.
SAFANÃO NO ELEVADOR - Arranjei duas horas para sair de onde estava. Como o trânsito ficou pior depois do Carnaval, decidi pegar um ônibus, senão iria gastar uma fortuna em taxi. Cruzei a ponte nova e desovei na rua Butantã, onde fiquei à mercê do barulho do motor (que ocupa lugar dentro do veículo, junto com os passageiros, uma solução da engenharia marota escravagista), e do calor infernal. Em 20 minutos cruzei a Faria Lima. Subi penosamente a Teodoro Sampaio e depois de uma légua de tempo, aportei na Consolação. Também estava tudo engarrafado. Só depois de uma hora e meia cheguei na rua Aurora, onde se hospedava aquele sujeito que eu citava tanto e que mal conhecia. Meu tempo já estava praticamente esgotado. Mas aquele encontro não podia ser adiado (não sei porquê, lembrei facão faiscando ao sol, barulho de rifle, canhoneio). Pisei na sujeira da calçada – a mesma de milhares de anos atrás – e me arrisquei na portaria do hotel barato, que despencava em tudo, inclusive no vetusto elevador movido a manivela e que ringia à menor aproximação. Subi até o novo andar, não sem antes levar um susto no sétimo, quando a pouca luz se foi e o elevador, movido a vapor, estacionou para sempre. Como estava munido de toda paciência do mundo, aguardei. Só depois notei que o bicho subiu dois andares quando tudo ainda estava escuro. Alguém puxava o dito pelo cangote. Desconfiei quem poderia ser.
LENÇO BRANCO - Mas a porta abriu e eu não enxergava ninguém. Acendi um fósforo depois de algumas tentativas frustradas, pois costumo guardar os palitos usados dentro da caixa. Fui queimando os dedos por um dos corredores, mas tive de voltar. Era no outro lado, o que dava para uma janela minúscula, gradeada, que lançava uma luz fosca do dia lá fora, abafado e com nuvens pesadas. Finalmente consegui que um dos últimos fósforos iluminasse o número 93, que estava torto, carcomido em seu metal de nenhuma categoria. Fui bater, mas uma chama atrás de mim chamou a atenção:
- 1893, disse uma aparição, que se confundia numa dobra do corredor. A guerra da degola!
- Sr. Argeu! exclamei, no susto.
O outro empertigou-se. Não gostava de ser tratado como civil. Usava ainda farda da Brigada Militar, no tempo em que essa tropa era um exército bem municiado e em ação constante.
- Cabo Adão, às suas ordens, se não for incômodo me chamar assim, disse.
Vi então o reflexo da luz que entrava filtrada pela janela do corredor nos botões outrora dourados da sua farda amarela. Notei também que a vestimenta estava limpa, quase passada e que para completar o quadro faltava apenas um capacete. Mas o que se destacava era o imenso lenço branco pendurado no pescoço.
- Sempre fui chimango, disse. O senhor não tem nada contra os blancos, tem, senhor escritor? Ou prefere os maragatos como aquele...
(deu uma cuspidinha de lado)...
-...teu “general” (sua entonação pedia aspas) Honório de Lemos.
- Sou isento, cabo Adão, disse, me aproximando. Para mim tanto faz.
- O senhor é quem sabe. Mas é bom lembrar que teu tio Waldemar era do nosso lado. Usava também lenço branco naquelas guerras todas.
Talvez por isso cabo Adão me tratasse com um pouco mais de consideração do que Honório. Mas uma dúvida me ocorreu:
- Ué, Honório me falou que o tio tinha lhe curado de um balaço na paleta.
BALAÇO - Cabo Adão sorriu-se todo. Mostrava com isso que sabia mais, apesar de eu ter tido encontro cara a cara com Honório, como está descrito no meu novo romance.
- Ele foi nosso prisioneiro e a bala era minha. Te assustaste?
O branco de susto da minha cara contrastava com o ambiente. Já estava cansado daquelas aparições.
- O que o traz a São Paulo, cabo Adão?
O militar fechou a cara em sua posição de sentido (coisa que fazia sempre, jamais relaxava).
- O senhor me convocou. Vim cuidar dos que querem faltar ao lançamento do seu romance.
Meti a mão na cabeça. Por que eu invento essas coisas?
- Era brincadeira, rapaz...Ninguém pode ser obrigado a ir!
Cabo Adão fechou mais ainda a cara. Não acreditava em e-mail, não admitia defecção, não gostava de ser convocado em vão. Estava, ainda, em guerra.
- Quer dizer que o senhor me convocou à toa?
- Foi meu jeito de dizer que gostaria de ver todo mundo lá. Usei uma metáfora da fronteira.
Cabo Adão intensificou sua cara de estranhamento. Vi que tinha enorme ruga vertical em cima do olho, que atravessava até o topo da testa preta-mulata, olhos amarelos-terra, sombrancelhas finas, rosto meio ovalado e puxado, como se um índio tivesse laçado uma escrava fugida. Me olhava desconfiado, mas não perdia o respeito:
- Estarei de plantão. Pode deixar que, para os mais renitentes, eu entrego pessoalmente o convite.
Que enrascada! Imaginei algum pobre convidado, recebendo tarde da noite o papel timbrado da editora pela mão do guerreiro que fatalmente colocaria o pé no vão da porta que se abririria, só para garantir a presença. Falei:
- Estamos ainda confirmando data, hora e local. E ainda não imprimimos o convite.
- Não faz mal. Eu espero.
E desembrulhou um pacote amassado, marrom, onde tinha uma boa quantidade de fumo de corda e com sua faca que tirou da cintura, de trás,começou a fazer um palheiro.
Quando acendeu, lembrei de outro parente meu, o tio Antenor. O pescador de beira de rio. O cara-massada. O sem-dentes contador de causos. O pai de dezenas de filhos e marido de várias esposas. O rei do desalinho. Tio Antenor agora era apenas lembrança, palavra que o rio Uruguai sopra, prometendo novas aparições.
- Escuta aqui, disse Cabo Adão, meio sem cerimônia ( o que não era do seu feitio). De que trata afinal o teu livro?
E me olhou com aquele rosto impenetrável, parede de sombra em meio à escuridão do corredor do hotel, ereto como um marechal, concentrando naquele perfil toda a majestade perdida de um povo. Fiquei, por alguns instantes, completamente mudo antes de responder.
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