4 de dezembro de 2003

O HUMORISMO RADICAL


Fortuna ria sempre que via uma seção chamada Humor. Achava redundante. Na imprensa de hoje, o chamado humorista (no fundo, um jornalista que não paga-pau para as feitorias internas) conquistou o direito de dizer o que todos estão pensando. Quando acha graça da piada, o poder se preserva, e transfere o ridículo de que é alvo para o autor da bobagem. Só que nossos humoristas, cientes disso, viraram, por eliminação, os melhores editorialistas. Só na Folha tem três de matar: Angeli, Laerte e José Simão.

FORA DA ORDEM - A crítica ao gerundismo sob o nome de secretariês é uma das grandes sacadas de Laerte, o artista que nos deu o bizarro Homem-Catraca, super-heróis como o ursinho Pluft e desenha cenas como a do casal de cachorros que chega de carro para encomendar uma casinha embaixo do viaduto – e atira um osso como pagamento para o pobre do homem que recebe o pedido. Vale mais do que qualquer diatribe da página dois. Angeli é uma síntese, uma transcendência de todos os grandes cartunistas do Brasil – e alguns fora da fronteira- , e deles se destaca com identidade própria. Em crise permanente, Angeli aposta tudo num desenho, que cria como se fosse o último. O desespero do povo retratado no seu trabalho diário alimenta a grandeza do seu traço. Angeli é uma advertência, a ameaça do que a realidade representa ao tornar-se invisível diante da insensibilidade geral. Mas, se sua profecia é épica, sua postura é libertária. Ele esculhamba o mundo dos negócios, a mesa farta da política, a crueza escatológica da elite e retrata a humanidade que é transformado em lixo pelo sistema que encontra na prepotência a única razão de viver. Angeli pode ser visto como filho de Fortuna, mas nada deve a ele. Não tem seguidores, já que herdou a contundência de uma época assassinada e a carrega no coração como um lápis de ponta caprichada. Laerte corre por fora, conecta outros mundos, e nos surpreende porque é o mestre da cama de gato. Nada cabe em seu traço, que a tudo e a todos escapa. Não vamos tentar enquadrá-lo com palavras, porque isso seria deboche. É bom calar-se diante de Laerte, que mostra o quanto de sinistro há na normalidade. Em José Simão, a língua solta, a catequese contra a falsidade do discurso do poder apóia-se na contribuição milionária de todos os erros. Simão é o modernismo em pleno apocalipse. Refaz o século 20 com a boca escancarada oswaldiana, mas não presta tributo a essa forçada sintonia. Rei do bordão, Simão é rádio por escrito. Tem o escracho sonhado um dia por Ary Barroso, que nunca chegou a tanto porque era de outra humanidade e vivia em outro tempo.

METAIS NÃO-FERROSOS - Contei no programa Comunique-se a história que vivi como foca ao cobrir um seminário inteiro sem entender uma só palavra, e só descobri do que se tratava quando me lembraram anos depois que aquele era um encontro sobre metais não-ferrosos. Tem outra da coletiva do João Gilberto, quando eu fiz uma única pergunta para o Ouvido Absoluto: “O quê?”, perguntei, na maior cara de pau. Ao que o Gênio respondeu, escandindo as sílabas e de dentes cerrados: “Claus-O-ger-man”. Era o nome do genial maestro do inesquecível disco Amoroso, obra-prima mundial de todos os tempos. Para um chefe de arquivo num jornal longínquo onde me meti em minhas andanças, meu editor Jorge Escosteguy perguntou: “Tens a foto de Picasso?” Diante do silêncio do outro, Scotch arriscou: “Sabe quem é o Picasso?” O arquivista não se deu por achado: “Não sei, mas tenho“. Acho essa resposta absolutamente magnífica. Aplico sempre que falam de alguém muito importante que desconheço. As palavras são cheias de truques e armadilhas. Lembro meu pai aos berros no telefone em Uruguaiana, que ainda era daqueles antigos, a manivela, que tinha uma “cara” onde os dois grandes olhos vibravam ao som de uma campainha colocada no meio deles: “Fica na expectativa!” dizia meu pai pela milésima vez, acertando um negócio. O homem simples do outro lado da linha replicava, desanimado: “Mas onde fica isso, seu Ortiz? Abaixo ou acima do rio Uruguai?” Assim são as palavras, sustento e alegria das nossas vidas.


RETORNO - É preciso divulgar o endereço da segunda parte da entrevista para o Comunique-se (portanto, ela está toda no ar e não só a primeira hora do programa, como tinha dito antes). É no:
http://www.alltv.com.br/ondemand.php?arquivo=2003112919.wmv.

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