1 de maio de 2003

DEUS É CINEASTA

DEUS É CINEASTA

Nei Duclós

Cacá Diegues entrega o ouro quando o fiel escudeiro de Deus elogia o cenário e pede para baixar a música. Nessa cena, nenhuma dúvida sobre quem é de verdade o Ser Supremo.
O Deus Cacá encara a criação do mundo como um filme. O mundo é a civilização brasileira, formatado pelo romance nordestino, as visões do paraíso e a própria obra de Cacá, de Bye Bye Brasil a Chuvas de Verão.

Deus/Cacá tem história e ela é feita de um cenário que está muito acima do nível da humanidade que o habita. O Deus/cineasta vai em busca de um santo, de um justo, e quando o encontra descobre que ele é igualzinho aos outros, ou seja, um descrente (que finge-se ateu), uma pessoa pela metade, que age de maneira dispersa, que tem a fala cortada pela gagueira e se esconde (migra o tempo todo) porque só assim se sente livre para fazer o Bem.

Quem faz o Mal também está em baixa (como é o caso do feiticeiro sem clientes e do agiota que não recebe) e até mesmo a autosuficiência da Divindade (manifestada em permanente impaciência) precisa da superstição para segurar a barra – por isso bate na madeira três vezes e sai pela porta que entrou. O cuidado de Deus é amar suas criaturas, mas não apaixonar-se por elas. Quase acontece. A saída é entregar a noiva ao seu escudeiro e apostar na descendência de uma humanidade que ainda não merece o cenário criado para ela. A humanidade que habita o paraíso está em oposição a ele e o máximo que Deus consegue é que haja uma sintonia, mesmo que de forma contemplativa – ou seja, sem interação de fato (o casal no barco olhando as estrelas no final, e guiando-se pela referência ao Cruzeiro do Sul). O amor é a melhor opção para um lugar que ainda não descobriu a democracia e onde a agiotagem e a violência são as únicas palavras das finanças.

O Brasil de Cacá ainda é o Descoberto, com favelas em cima para atrapalhar. “Espera só o povinho que eu vou colocar lá” diria o Deus da piada pronta ao ouvir reclamações sobre seu excesso ao distribuir suas graças pelo Brasil.

O Deus cineasta tem bom gosto (denuncia a baixa literatura), é onipotente (faz peixe voar), ranzinza (gosta de dizer “não é da sua conta”) e quer férias, ou seja, prêmio pelo muito que já fez por aqui. O Deus empreendedor – que irrita-se com a idéia fixa do povo em relação à tal felicidade - sente falta do Deus que curte. Deus não está feliz e implica com a Queda. Precisa descansar. Se fosse pelo resto do mundo, já estaria na rede. Mas como abandonar o Brasil, sua obra-prima, à falta de sorte dos seus habitantes?

Essa preocupação gera um sentimento de misericórdia para com a terra em descompasso com seu destino de grandeza. O povo, alvo da sua irritação, estragou tudo, mas nem tudo está perdido: a Criação pode ser um magnífico road movie ou simplesmente uma história de amor.

Deus é cineasta e gosta de ser aplaudido de pé.

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