4 de maio de 2003

ALMOÇO NA TELHA

ALMOÇO NA TELHA

Nei Duclós
(nei@consciencia.org)

O Olhar Absoluto, Marcelo Min, levou-me para almoçar uma anchova na telha, ao forno, na Vila de Carapicuíba, que ostenta, entre outras atrações, casinholas coloniais caindo aos pedaços, onde numa delas abriga-se um bizarro restaurante chileno. Acompanhados pela fotógrafa Cinthia e o perspicaz repórter policial de A Verdade Sangrenta, Gim Tones – em processo avançado de deterioração física -, devoramos uns seis quilos de peixe, mas só o Min encarregou-se dos olhos do bicho – ou melhor, de um só, já que o outro exemplar certamente foi roubado pelo gato-ladrão-com-piolhos que o Gim fez questão de adotar no meio da confraternização.

Min precisava desse tipo de alimento – córnea, íris, pestanas - para o que viria depois: fotografar nos mínimos detalhes uma procissão de Santa Cruz, saída da igrejinha histórica em direção a um colubreante (palavra que vem de cobra) périplo pelo bairro, com direito a íngremes lombas (palavra portoalegrense que denota subidas) e vielas ladeadas de casas bem guardadas por cachorrões. Um filhote canino, aparentemente abandonado, foi recolhido por Gim, que atravessa uma fase romântica devido à ameaça de pneunomia que lhe sugere nichos recônditos com cobertores compreensivos. Mas ele abandonou o bicho à própria sorte pois assustou-se com nossas advertências sobre a duração de um cachorro – no mínimo quinze anos – o tamanho que o pequenino iria alcançar em 45 dias de ração, e o quanto ele ficaria feroz morando no edifício Copan.

No almoço, fomos abordados pelo dono do lugar, que se dizia arrependido de ter nascido chileno, já que sempre quis ser o que todo mundo teme: um argentino. O sujeito farejou uma conversa minha sobre churrascos num subúrbio da tríplice fronteira gaúcha e ficou esperando que eu falasse mal da sua admiração. Como não era meu dia de desancar os portenhos, saiu-se com uma longa catilinária sobre a performance argentina no comportamento e na economia. Também na hora do ágape fomos assocados por outros personagens que se revezavam na mesma pergunta sobre um carro estacionado na frente do restaurante, o que estava provisoriamente proibido devido à massa popular concentrada em frente à igreja e que precisava de caminho livre para a caminhada.

Além de comer olho – e depois sentir-se levemente enfarado devido a esse excesso – o Olhar Absoluto teve a manha de resgatar a presença do chilo-argentino com uma pergunta amigável, o que quase lhe valeu um estrangulamento por parte de Gim. A sorte que o crime foi evitado ao surgir a comparação entre Min e Tim Maia e seu sucesso “não não vá embora”. Ao ser informado sobre o novo nome do fotógrafo – Min Maia – Gim teve um acesso de tosse que confundimos com riso convulso.

Acompanhamos pacientemente Min na sua cobertura da procissão, que por alguns momentos teve como gerente de tráfego o solerte repórter policial em avançado estado de decomposição. Por insistência minha, saímos já noite fechada de maneira apressada pois já se avizinhavam algumas barras comuns ao lugar, o que deixava a dupla de criação Gim/Min cada vez mais à vontade. Escaldado na convivência de loucos profissionais da imprensa, que já me fizeram pagar inúmeros micos por infinitos becos, sugeri que fôssemos tomar um cafezinho em casa, o que cumpri em parte, pois tendo tecido maravilhas sobre minha arte de fazer café, acabei galopeando uma água quente e preta servida em canecas inadequadas, o que apressou a despedida desses caros amigos que me salvaram de um sábado mergulhado na mais absoluta mesmice.

Aproveitando minha distração e alegria com as visitas, meu fiel catchorrinho Nick, que até o momento estava sendo monitorado para não despejar sua urina nas rodas do meu carro novo, fez exatamente o que se espera de um animal cockeriano de quatro patas: derramou-se em pneus estalando de novos , o que lhe valeu sérias reprimendas e ameaças de telefonemas para a carrocinha. A família distante, quando soube da arte de Nicholas, limitou-se a ir.

Hoje, domingo, Nick está de castigo e só pode fazer suas estropolias no corredor dos fundos, o que se recusa terminantemente, economizando bexiga para uma nova distração de minha parte. Bem que ele poderia passar uma temporada no Copan, mostrando a Gim Tones o que é bom para a tosse.

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