20 de dezembro de 2020

CACHORROS

 Nei Duclós 


Os passarinhos são cachorros 

Correm atrás dos pneus dos carros

Latem o dia inteiro

Mijam nos  portões dos vizinhos

Cheiram as  compras 

Se soltam pelas ruas e só voltam dois dias depois


De qualquer raça  pintassilgo gorriao bem te vi João do barro

São cachorros livres do canil

Bravos como buldogues sinistros como corujas 

em bandos como pombas

Os cachorrinhos voam sobre muros e telhados

E entram nas casas para ocupar os sofás 


Foram libertos das gaiolas

E mordem os passantes 

Mas sempre tem alguém para cuidar deles quando quebram a pata ou precisam de banho e tosa


Por isso são pilantras 

E vivem atormentando os gatos



ATENAS

 Neo Duclós 


Estás resolvida, tens teus amores

Com quem divides prazer e jantares 

És inacessível para o risco na sombra

Não apostas no azarão, que sou urso e ogro


Poderias ser feliz nas pradarias

Mas preferes as grutas do conforto

Pintas bisontes nas paredes nuas

Enquanto percorro trilhas pelas nuvens


Não dá certo, amor

Estamos presos ao viver à  toa

A não ser que eu rompa esse casulo torpe

E te faça sofrer, estátua de Atenas



ETERNO RETORNO

 Nei Duclós 


Lugar de trabalho são moradas eternas 

Você volta para a mesma redação

Sempre que te identificam imóvel no tempo 

Esse tirano que te engessa na moldura dos contemporâneos  


Você já deixou a profissão

Que acabou e foi substituída pela correção automática

Mas o chefe de reportagem continua lá 

Te obrigando a fazer aeroporto depois de uma tarde suada


Você não tem mais pique para tomar todas depois do fechamento

E assim conseguir parar de tremer

Chove na saída em altas horas

O último ônibus partiu


Você mora na rua alagada

No intervalo entre o expediente

E a madrugada no bar das putas

Onde todos se reunem

Desatentos ao extermínio dos dias

E à  persistencia desse amor pelo que fizemos

E que nos condenou para sempre


Corte cinco linhas

Depois pode ir embora

Dizem quando já é  tarde demais

Voltamos encharcados pelo que somos

Palavras impressas em corações de ouro

SOPRO

 Nei Duclós 


Arte não é  abandono 

Deixar à própria sorte

A criação que depende do artesão 

E não do sonho

Uma construção se faz com pedra

E só depois desenha 


Há força no ramo da armadura

Nunca o ar que é o vento quando se espreguiça


Inventar é  tornenta, não a calmaria

A pressão sobre a flor que está contigo

O poema torto ainda no estribo

Antes que te acordes

Que sou eu o sopro que me levanta

E recebes acima de qualquer suspeita


Arte se adona do céu que inventas  ao sair da linha

14 de dezembro de 2020

TESTEMUNHO

Nei Duclós 


Falo a verdade, mas ninguém escuta

Preferem que eu minta, água com açúcar 

Trago novidades,  criaturas novinhas

Vem bem do fundo, invisivel reduto

O que brilha bonito na superfície


Eu também  quero subir à tona

Boiar no sonho, rir dos mais velhos

Mas sou lava de vulcão extinto

Preso no impulso que não se derrama


Não dou mais testemunho, só de birra

Fecho-me em copas com a ladainha

A mesma que o árcade compunha

Para a pastora, melhor fantasia


Se escutarem no intervalo do trânsito 

Sou eu que proponho ao  tocar a buzina



6 de dezembro de 2020

RESTO

 Nei Duclós 


Não vai acontecer o que fantasio

É impossível o que parece explícito 

Haverá sempre conflito entre água e vinho

O açúcar não substitui o vício


A solidão se preserva imaginando vidas

Que não se concretizam, antes se esfumam

O cerco aperta e te confinas

Algozes invisíveis fazem a ronda

Inventas uma história mas é  só cinema


As luzes se acendem é  hora da faxina

Limpas os pés na suja inconfidência

És autor, resta a  literatura 



4 de dezembro de 2020

DOUTORA

Nei Duclós 


Jogas água fria com medo da fervura

Minha tocaia no miolo da curva

Foges assim do que será um dia 

Tu em meus braços a pedir clemência 


Achas que podes desfazer costuras

O fio que nos une é de boa procedência 

O amor destruirá tua teimosia

Teu álibi perfeito, o de ser jurista


As leis não te protegem, beldade no ofício

Não cubra o inevitável com tua pose de doutora

Já entrei em teu caminho, sacerdotisa 

Subo na carruagem enquanto dás gritinhos


Sou o monstro que invocas em teu êxtase

Chega de disfarces, pilha de ternura 



VARANDA

Nei Duclós 


A brisa bate na varanda banhada em sombra pelo calorão de dezembro


É o melhor momento

Pontuado pelo silêncio e a companhia do muro, a rede e a romanzeira


Ficará como exemplo mesmo que o tempo mude e nos leve para os confins do universo 


Somos eternos graças ao vento



3 de dezembro de 2020

PERFIL

 Nei Duclós 


Vês em mim o perfil antigo

Que há muito abandonei

Não sou um talismã para tua coleção 


Recusas a mudança que me transformou

pois no fundo queres ser o que passou


Chega de saudade, como diz a canção 

Durar não é  maldade, é só meu coração 

Que continua ativo como um sonho bom

E permaneço vivo como tu


Diga adeus ao que fui e ainda guardas como teu

A única revolução é o tempo, meu amor 



30 de novembro de 2020

ENTREGA

 Nei  Duclós 


Falta em ti algo que ainda não preenches

E que em vao procuras com as antenas

Eu tenho a cura mas temo

Não ficar a altura de tão abissal desejo


Por isso viciei na tocaia

Estou sempre onde não devo

Você  com sua gruta na saia

Eu adivinhando o vento


Talvez consiga tua entrega

E eu entre com o fogo aceso

Não é para vencer o escuro

Mas cumprir a lei da natureza


Meu corpo bate nas paredes

Da tua pele intacta

Berras para a lua, inclemente



DIVERSOS

 Nei Ducl ós  


Temos em comum as plataformas

Os formatos digitais, a família de letras

O mesmo tipo de relação aos pés dos posts

Os liike e as indiferenças


Mas não somos iguais

E sim de outra natureza

Sou bicho do mato

E tu da realeza 

Convivemos em diversos planetas

Saio cedo para plantar

Enquanto ficas em casa

Volto para cear

E ainda estás dormindo, princesa

Faço o jantar

E te beijo com o poema

És a melhor porção da colheita

Mulher que me deita

E fecha meu perfil suspeito

Abrindo os olhos de açucena 



29 de novembro de 2020

FABULA SONORA

 Nei Duclós 


Ele comecou a cantar depois de um acidente grave

Eram orações de voz espichada e alta

Com distorções que reverberavam em templos


Orações desconhecidas que alcançavam estradas sonoras acima das nuvens

Unindo religiões e dispondo a paz em cada canto conflagrado

na Terra em estado terminal


Começaram a adorá-lo como profeta

até  que tudo passou


Ele acordou em Jerusalém e quis ir para Roma ao lado de Sara

que o contemplava desde os primeiros acordes da sua fase sagrada



28 de novembro de 2020

A ÚLTIMA PÉTALA

 Nei Duclós 


Para o mundo ficar mais autêntico

Era preciso separar flor e mulher

Deixar de falar em sorriso de criança

Rir do crepúsculo 

Esquecer Deus

Denunciar as boas maneiras

E garantir que ninguém é inocente


Quando hoje vejo moças, mulheres, idosos e menores de idade sendo espancados pela truculência armada

Descubro que era para isso, chegar a esse nível

Que nos convenceram a deixar de ser humanos

Destruindo todos os sinais da gentileza e admiração pela beleza alheia


Cultivaram o terreno com espinhos e plantas carnívoras 

Gargalhando por sermos românticos

E. nos chamando de alienados


Agora a flor ficou inviável 

A não ser que você  ainda guarde a última pétala entre teus seios de amor


26 de novembro de 2020

CICLONE

Nei Duclós 


Mulher é  admirável porque tem um corpo

Presença de chegar, pipoco, assombro 

Arrasa quarteirão, vulcão, ciclone 

Ser lhe basta para afluir  coadjuvantes


Homem é  visto em porções, não gera vento

Ninguém nota o galante como um terremoto

Que a mulher provoca, Ava Gardner, Sophia Loren

Lady Di ou Eva Mendes 


Mulher é  um sufoco quando anda 

Ou simplesmente assume qualquer trono

Tem majestade de berço, estrondo de gênero 

Inimitável por ser criação estupenda 

Não precisa de nada, dirão: dinheiro!

Mas esse não é o foco 

E sim uma performance

Calcanhar, cabelo, gesto ao largo

Fazendo sinal ao Supremo que llhe deu talento

Habite a Terra, disse Ele, mostre a que veio

Que todo o resto lhe fará a corte 

Mesmo não sendo rainha apenas o que disseram existir

O ser humano


25 de novembro de 2020

GATA

 Nei Duclós 


Você é  gata

Mas nada te define

Chamo assim por admiração e hábito

Adoto a imagem comum que não representa

Mas serve para eu dizer o que dá gana


Nem gosto de felinas porque arranham

Mas são graciosas vistas a distância

Se pões uma seda com ombros à mostra

Dá vontade de latir mas me conformo


No fundo sou eu o animal doméstico

Pet da preguiça, perseguidor escasso

Minha ração é esse corpo em curvas

Olhar lânguido e cérebro de fera


Quem me dera avançar no pedaço

Mas tua prudência impede, pescoço de guizos

Evito o escândalo e ouço baixinho

O ronronar que emites no canto da sala


Ou sobre a cama, pele de camurça 

Dentes de amianto, pernas que me captam

Lanças um  beijo e eu corro na frente

E trago a teus pés, delicia de saias



23 de novembro de 2020

VIAGEM NO TEMPO

 Nei Duclós 


O tempo não volta atrás porque não lembra

Acha que nasceu torto, um parafuso a menos

Que é  essa mania de seguir em frente

Falha no mecanismo, flecha em céu redondo


Ele pede socorro no eterno presente

Precisa de segurança para viver muito antes


Mas como herdeiro do trono não tem esse direito

Seu poder está limitado à dura linhagem

Não pode ter esperança na viagem

Que o leve ao paraíso, sonho que demora


Por isso não tenho chance, minha pastora

Jamais terei de volta teu sopro eterno

Fico ao redor do teu rosto e tua imagem

Vives no estrangeiro, a Lua ou Marte


19 de novembro de 2020

DIFERENÇA

 Nei Duclós 


Mulher  é  fraca, não se defende

Homem é  bruto e se arrepende

Mulher é  forte, sabe por onde

Homem é frágil, um pé de vento


Pode mudar o perfil do gênero

Porque a diferença não mais depende

Das capacidades ou do fôlego

Mas do que está dentro da alma errante


Ofereço a flor sem parecer pedante

E tu decide se me aceitas

Eu te quero e por isso aprendo

A viver como tu no limite extremo

Apenas mortal no amor eterno



O ANJO

 Nei Duclós 


Escapa-me a vocação 

Com tanta força

Que as palavras ficam órfãs 

Da poesia

E o que era conforto se confina

No pânico do vazio

De uma escritura


O dom em fuga perde a fibra

E o que foi companhia hoje é rua

Ao relento teço  no cortiço 

O último som da epifania


Não sabia que tudo vem do anjo

Que sopra do acervo do divino

Achava que era eu o sonho humano

E não o que mora muito acima


Escalo novamente a montanha

Para poder vislumbrar a planície

Chego ao topo e o poema

Bate asas no retorno de uma esfinge



BARRA

 Nei Duclós 


Amor é o que se espera 

No coração desta hora

Não palavras de amor

Com sentimento de perda

Mas ganho de corpo em flor

Perfume do bom concerto

Sinfônico realejo

Num papelzinho da sorte


Amor que chega do Norte

E no sul o sonho instala 

Rosa dos ventos, mandala

Diáspora do rosto deserto

Concentração de um conceito

O ser sem nenhum freio

A não ser o beijo alheio

Que na noite alta trava


Amor feito um cocheiro

Cego que inventa a estrada

E pega em bruto rodeio

A cintura de uma fada


Amor que dança uma valsa

E sussurra num bolero

Que arrasa em pequena orquestra

E cai em qualquer conversa


Amor que bem cedo venha

De manhã ou logo à tarde

Desde que eu fique no meio

A segurar sua barra 


18 de novembro de 2020

COROA MAL ASSOMBRADA

 The Crown 4 

COROA MAL ASSOMBRADA


Nei Duclós 

Num filme, história baseada em fatos reais é, como qualquer outra, cinema. A quarta temporada de The Crown se baseia em folmes clássicos para contar a maldição da família real britânica. Como em As regras do jogo, de Jean Renoir (1939) apresenta a nobreza britânica selecionando os adventicios, como Margaret Thacher ou Diana Spencer, por meio de testes que são armadilhas. O confronto entre os nobres e o resto é  uma véspera de desastres como notou Renoir ao comentar seu clássico ambientado no clima sinistro da segunda guerra iminente.


O que conta são roteiros, cenas, interpretações e cenários que funcionam como cinema. Só assim haverá chance para a História. Por isso The Crown lança mão de outro tema clássico, abordado por Giuseppe Tornatore em Estamos todos bem (1990), baseado em Era um vez em Tokio, de Yazujiro Ozu ( 1953), em que pais visitam os filhos para ver como estão e sofrem ao descobrir a realidade.


Finalmente, a série mostra como uma comédia romântica vira um pesadelo bergmaniano de cenas de um casamento.


Vemos então Lady Di entrando em parafuso na maldição da coroa, Thatcher enfrentando o vazio de uma aristocracia criminosa, e a rainha enfentado seus terrores tentando se manter firme no trono que precisou eliminar parentes indesejados acometidos de doenças mentais, entre outras situações.


Vemos como a princesa é  ameaçada pelo sogro e como é  deixada de lado depois de gerar o futuro rei.


Informações técnicas pela internet. Aqui abordamos a obra na minha perspectiva de Todo filme é sobre cinema.


Nei Duclós

14 de novembro de 2020

FÁBULA

 Nei Duclós 


O dia foi demais

Não sobrou energia

À noite, quando ela dormia

A lança mergulhou no mel


Nada mais natural

Para uma rainha

E seu súdito fiel



BRUTO AMOR

 Nei Duclós 


Não é o poema que pega

Caprichar em cada letra 

Extrapolar no soneto

Expor vanguarda de erudito


Tampouco fechar no sentimento 

Dotes de solidário espectro


Nada disso consta no que pega de jeito

No coração alheio 

Só sendo você mesmo sem disfarces

Poderá tocar na flor e assim mesmo

Remotamente

Para evitar o estrago e o medo 

Qúe pode provocar teu bruto amor



11 de novembro de 2020

VOLTEI

 Nei Duclós 


Já  tinha dito amei porém  esqueci

Lembrei quando voltei a ti

como se fosse a primeira vez 

E lá estavas tu, sorriso ainda em luz

A seduzir pelo tempo todo quem te vê 


Só amei mesmo quando não mais resisti

Ao fôlego da tua presença em flor

Fogo brando a me fazer sentir

O quanto perdi do teu amor

Que estava ali desde o inicio



10 de novembro de 2020

PAISAGENS

 Nei Duclós 


Todos sonham com a musa

Inventam encontros namoros

Ou simplesmente acompanham o esplendor da sua beleza


Ela e cada um de nós temos uma vida à  parte

Admirar a sua arte é pura transcendência

Cultivamos paixão de adolescência

Ou convívio em paisagem madura


Musa é  uma forma de não sermos sós

Por seu intermédio e a sua revelia

trocamos lances afetivos

Ficamos melhores

O amor real também é  uma fantasia


.

DESFILADEIRO

 Nei Duclós 


Não posso mais te amar

assim como tu me deixas

Pensamos diferente e pode sair briga

Você fica no pódio das noticias funestas

Baladas criminosas sob escudos de palha


Eu me recolho

Preciso assestar baterias contra tudo

Fiquei só no desfiladeiro

Bandidos tentam chegar até mim

Espero que não estejas entre eles

Porque meu alvo é amplo e a arma neutra

Aponto com este mortal instrumento

O poema



POEIRA

 Nei Duclós 


O que existe é involução


Fomos criados gigantes com vida longeva de mil anos

e colocados no paraiso


Hoje somos lagartos no pântano

e vamos virar amebas no caldo primordial


Depois seremos apenas espirro de estrelas


Será à  noite, meu bem

Cairei em poeira brilhante no teu colo azul de saudade


9 de novembro de 2020

AMIGOS

 Nei Duclós 


Tempo, o que você  fez com os amigos?

Mudaram eles e eu continuo o mesmo?

Ou será o contrário?


Tempo, cortaste o vínculo 

Ou amizade não passou de fantasia?


Nem sempre o que vivo

Vira poesia


8 de novembro de 2020

É FÁCIL DIZER

 Nei Duclós 


É fácil dizer eu te amo 

você sempre acredita

Mesmo sabendo que tiro o time de campo

Toda vez que tenho outro encontro


Gosto de ouvir que me amas

Mesmo sabendo que é um engano

Que se repete todo Natal ou Ano Novo 


Não trocamos ilusões 

Apenas momentos de sermos amantes

Mesmo sabendo que não dispomos

De nenhuma chance 



CALENDARIO

 Nei Duclós 


É bom saber que hoje é  domingo

E os dias continua assim batizados e divididos

Embora saibamos que nada mais é  o mesmo


Há um gosto permanente de segunda-feira

Os meses se embaralham sobre a mesa

Equanto a vida real permanece na geladeira

Junto com os alimentos  vindos em delivery


O que faremos no Natal e Ano Novo

A não ser assistir solitários  comédias românticas

Enviar e receber presentes pelo correio?

Ainda vale vestir roupa branca?

já que está proibido pular as sete ondas


A esperança é  que termine não apenas este ano

Mas o calendário de perdas e danos

Para revisitarmos a cidade da infância 

E viajar para paisagens imensas

Que  existem apesar de nós 

E longe do pesadelo


Os dias voltarão a ser iguais

mas com uma diferença 

Faremos balada na terça 

Iremos à missa na quinta

E jantaremos juntos em Paris

Ou no boteco da esquina



6 de novembro de 2020

AO AR LIVRE

 Nei Duclós


Fiquei triste. Um rictus marca o canto da boca. Aconteceu sem eu perceber. Achava que poderia resistir, que era inesgotável a fonte de esperança e alegria. Evitei o baque me iludindo mas o corpo expõe as cicatrizes.


Bastaria o sol não ficar mais escondido para eu encerrar este ciclo. No escuro fabrico a poesia, único reduto do amor que não se entrega.


Saio ao ar livre e a Lua me enxerga. Vivo abaixo das nuvens que ela manipula em suas fases. Sou um coração na terra nua. Não me aconselhe, já visitei o futuro. Sei o que jamais direi, amiga. Não se impressione, é  só poesia. Essa arte que nos une em pleno apocalipse.



DESAFIO

  Nei Duclós 


Pandemia é quando pomos pijama

E moramos na cama

Com intervalos de geladeira

Abandonamos os restaurantes

Os garçons são os motoqueiros 

Damos aula na  cozinha

Fazemos shows na sala

No celular demoramos

Nem vamos mais para a fila dos bancos


Todos aguardam a vacina

Mas o que vem é a segunda onda

O mundo deixou de ser humano

Somos apenas um bando

A errar mensagens e ler notícias pela metade

Tudo agora pertence ao passado

Nesta época em que diziam ser o futuro

Ganhamos o tempo embrulhado para presente 


Perdemos 

Só nos resta vencer o duro desafio da sobrevivência 


5 de novembro de 2020

BOITATÁ

 Nei Duclós 


Perdi a alma no acampamento

Voltamos para a cidade sem conseguir achá-la

Descarregamos a tralha e ela não estava

junto aos grumatãs na rede

Na caixa de anzóis

Na cartucheira

Na barraca verde sebosa


A alma teria se escondido só  por rebeldia?

Cansada do meu quarto, cadernos, escrivaninha?

Meu olhar no teto imaginando amores?


Queria ação, queria pesca

Continuar descendo o rio até as pedras

Onde moram os dourados


A alma ficou, livre no mato e no pampa   

Por isso sempre volto para visitá-la

Tire o barro dos pés, me diz 

Puxe um banco para o  chimarrão

Logo começa a escurecer, mazanza

E aí o boitatá vai aparecer

De olhos grandes


3 de novembro de 2020

PEDRAS

 Nei Duclós 


O que hoje são pedras

Que se amontoam em formas bizarras

A lembrar antigos templos

Paredões de catedrais sem santos

Altares soltos em trilhas detonadas

E faces de gigantes talhadas nas montanhas


Não foram pedras

Eram seres orgânicos

Mudavam de forma em caldeirões

Cercaram as águas para que jorrassem eternamente


Não foi a maldição que as imobilizou em esculturas disformes

Foi o próprio tempo

Que não conseguiu 

matá-las por serem feitas

À imagem e semelhança de um Deus enorme



2 de novembro de 2020

FADAS

 Nei Duclós 


Leio o verso sem vínculo

Ou raízes 

Como criatura unicelular

Verso sem sentido 

Madeira com verniz sobre nuvem que não existe 


Talvez essa poesia tão difundida 

Seja fruto da falta de tudo

Que assola as palavras

E portanto, a vida


O oposto é  o poema formiga

Seguido pelo olhar em decúbito dorsal

Negação do épico e do lírico

Ou arcádico 

Como se toda poesia já feita fosse perda de tempo

E curte tomar assento na baliza

Vanguardas de abismo 


Um só soneto antigo

Pode desbastar o mofo que medra na pose supimpa

Ou um verso mínimo 

Daqueles que derrubam

Por não ter frescura , apenas ofício duro

Forja que não dispensa a fagulha que alimenta as fadas


LIVROS

 Nei Duclós 


Tínhamos um livro debaixo do braço

Os Quatro Quartetos  de TS Eliot

Numa versão pequena em português do grande poema

Éramos amigos de algumas editoras

José Olympio que nos dava Drummond e outros maiores de bandeja

A Brasiliense, a Nova Fronteira, a Paz e Terra

A Abril com seus Pensadores

A Globo de Porto Alegre, com Proust e todo o cânone 


Éramos íntimos de tantos autores

Lorca Maiakovski Érico Verissimo e o mais proximo de todos

Monteiro Lobato, o da Chave do Tamanho


Hoje não somos insetos graças ao Visconde 

Que traiu a boneca de pano

E votou como povo para que não fôssemos

Devorados pelo gato gordo da fazenda 


Os livros são  nossos professores

Amigos do peito, familiares 

Aplaudimos no final de um romance

Escrevemos  poesia depois de uma antologia


Hoje continuamos a ser os livros que nos criaram

Andamos como folhas sendo lidas

Exibimos capas surradas na cara veterana 

Vivemos em capítulos, trágicos como Lord Jim de Conrad

Habitados como o autor do Pequeno Príncipe

Eruditos como historiadores do interior

Contamos histórias fazemos poemas


Somos a humanidade rumo ao desfecho

Quando a última página nos liberta da leitura

E nos leva para Deus, que gosta de ler

E tem uma biblioteca que é  um assombro



30 de outubro de 2020

ALIMENTO


Cheiro teu corpo

Dele me alimento

O que produz teus poros nos momentos

Em que exercemos a véspera do banho


Perfume de um amor de acordo

Com o tempo que vivemos

Sentidos veteranos de acre sabor de campos

Viemos de longe quando havia sonho

Hoje somos penetras neste século medonho

Por isso exalas minha salvação coração de ouro

Sou o cão farejador da tua beleza 


Nei Duclós

27 de outubro de 2020

O MUNDO PERDIDO

 Nei Duclós 


Ninguém falava nada

Nem a blusa aberta no verão 

A saia levantada guardando a flor

O sangue, segredo da donzela no algodão 

As mangas de camisa, o peito nu

Penugem no braço e bicos de soutien


Todos calavam o poço de tesão 

Na borda a gurizada em volta do maiô

De bruços a esperança torrando ao sol

No baile um aperto que furava o chão

E os banhos de rio ao anoitecer


Lá vem o pai com o cinto na mão

O chinelo da mãe a descer sem dó 

Assim era o mundo antes de existir

O sêmen, o orgasmo, seja lá o que for

Havia ainda o flerte na sessão 

E até na missa um véu era mortal

Podia desmaiar antes da comunhão 



23 de outubro de 2020

ARCANJO

 Nei Duclós 


O dia já estava alto e Miguel não atendia

O telefone tocou, ele não mais existia

Partiu como um querubim, um arcanjo decidido

Colhido na mocidade com os pais ainda vivos

Que em vão o sacudia naquele final de vida

Estava de bruços, rijo, de rosto roçando o piso


A morte foi confirmada por dois especialistas

Que indiferentes levaram o corpo que estava frio


Mais tarde o sepultamos num sinistra tardinha

Em que nos despedimos sem saber o que dizíamos

O padre o encomendou falando que estava listo

Cumprira sua missão de estudos na academia

E que todos temos o mesmo duro destino


Ainda hoje me pergunto porque faço poesia

Se não serve de consolo nem gera uma epifania

Que seria sua volta numa data festiva

Dizendo que foi um sonho fruto da fantasia

E não este luto imenso que nos devora por dentro 

Este final dos tempos, obra do Apocalipse

Que só uma criatura na sua missão divina

Pode trazer esperança para a crueza infinita

Com suas asas silentes e a voz de teimosia

A nos dizer sempre é  tempo , meu pai, fique firme 


Nei Duclós 


Miguel Lobato Duclós 

29/5/1978

23/10/2015

OUTROS

 Nei Duclós 


Você ama outro

Quisera ser eu

Mas sou outro 

Não o outro que você ama

(um outro eu)

Mas eu mesmo

Nenhum outro



O AMIGO DO VENTO

 Nei Duclós 


É falso o poema que finge estar descalço 

Se calça sapato na praia

a meia se enche de areia


Qualquer pescador sabe

onde aperta o calo

no trovador que canta de galo

nos redutos do peixe


O que diz: 

"sou simples, sou do povo

por isso uso palavras como  claustro e misantropo

para impressionar nos concursos"


Sou diferente, diz o amigo do vento

Uso vogais e consoantes

e anuncio o que vendo


Olha o peixe, digo na cidade 

O que falo fica

O pé preso ao sentimento


20 de outubro de 2020

VIDA REAL

 Nei Duclós 


Sou fiel ao que me pega

Na emoção sem sossego

Filmes, livros, gente, sonhos

Sempre as mesmas fantasias 

Momentos, corações, poesia


Disso me alimento

E mantenho o corpo atento

O olhar em tua direção, musa silente

Representação de quem amo e vejo

na vida real, a imaginação 



CIRANDA

 Nei Duclós 


Admiração inclui o respeito

E não exclui o desejo 

Admirar não é coisa de santo

De êxtase profundo

De tesão reprimida


É gostar, mesmo que não seja para ssmpre

Não é colocar no altar da ilusão

Mas repartir o sentimento sem retorno

É quando desperdiçar o tempo é  bom

Treinamento para o coração que secou


É molho de flor

Cheiro de terra

Ciranda de amor 



19 de outubro de 2020

EXTENSO

 Nei Duclós 


Você compara o que faço agora

Com a obra do passado

Óbvio

O tempo tudo piora


Mas me sinto melhor

Mais extenso apesar de mais  raso


Já fui mar

Hoje sou praia



O MAL

 Nei Duclós 


O mal seduz pelo que não é.

Diz o que você quer ouvir

Veste-se de virtudes para trair

Cumpre a agenda da correção para se revelar torpe depois 

Ilude fingindo  bons sentimentos

Impoe-se  como conselheiro ou profeta

Conta com a fé  a ingenuidade e a esperança dos mortais


Portanto não me aconsehe  a ser positivo dinâmico ou perfeito


Sou o cara do desfiladeiro que segura o fogo contra i inimigo para dar chance de fuga aos humanos.

Corre bala de palavras na tempestade de chumbo e areia 



SELVAGEM

 Nei Duclós 


Sabe se lá o que houve no passado

O Tempo é  cioso em seus guardados

Olhamos com nossa cabeça do presente

E os segredos não se decifram 


O que aconteceu ontem

Ou na tua infância?

Parece que sabes

Mas a criança que não mora mais em ti não te diz a verdade


Mesmo agora, o que está claro?

Inventamos a História por teimosia 

A ciência é  uma fantasia

E a religião uma forma de submissão 

Ao que não entendemos


Tudo mais é soberba

Ilusões de criaturas datadas

E não me aconselhe a ser menos obscuro

Sou o garoto da esquina

Ameaço os que passam

E convido para um jogo de bola


Só sendo selvagem para segurar tanta barra



18 de outubro de 2020

VISITÁ

 Nei Duclós


Visitei meus arquivos

Só tinha você 

Do começo ao fim


Guardavas com tua imagem

Minha viagem solitária 

Que percorro como um crime


Tens o dom da companhia 

Arrimo de uma alma nua

Lua em flor por trás da poesia 


Outras já cumpriram essa mesma saga

Mas só tu és amor na vida deserta


Claridade desperta em meu obscuro traçado

Nasce a leste teu rosto ungido pela divindade

Não digo teu nome, apenas o conservo 

Em meu olhar coberto pela beleza transfigurada



16 de outubro de 2020

SOM

 Nei Duclós 


Você não acredita mais em mim

e tem  razão 

Abri mão do que tinha a dizer 

E o coração perdeu o som que produzia ao te ver


Sabes me ler

E não encontras mais em nosso extinto amor

O pássaro do amanhecer



15 de outubro de 2020

DESTINO

 Nei Duclós 


Para o amor fomos feitos, mas poucas pessoas lembram

Perdemos tempo e motivos que a Criação nos deu


A missão da beleza é nos tocar com essa revelação

É o estado da graça suprema

Que a deusa, mulher  como as outras

Exerce sob o domínio do destino

Vocação  dos mortais para superar o desfecho


Rompemos o selo datado

Quando celebramos

Mais do que a admiração e o sentimento

Mas a nossa sobrevivência 



13 de outubro de 2020

DUNKIRK, O HEROÍSMO DA SOBREVIVÊNCIA

 DUNKIRK, DE CHRISTOPHER NOLAN: O HEROÍSMO DA SOBREVIVENCIA 


Nei Duclós 


Numa situação terminal, de derrota, o sacrifício pessoal conta para uma Vitória coletiva mais tarde. O piloto que gasta todo o combustível para perseguir e abater aviões inimigos que dificultavam a operação de salvamento de milhares de soldados e que é  forçado a pousar em território dominado pelos alemães, o garoto que pega carona no pequeno barco que navega em direção à toca do Leão, o almirante que se se recusa a se salvar para beneficiar quem fica resistindo,  o recrutase  que lutam em desespero para escapar da armadilha, tudo isso se reveste de uma aura especial de heroísmo, o que não busca a glória mas algo mais importante, a sobrevivência.


O diretor de Interstellar e Inception, entre outros grandes filmes,  compõe nesta obra vencedora do Oscar de 2018 um tensa, dolorosa, heróica, sólida e deslumbrante recuperação da tragédia de Dunquerque em 1940, quando centenas de milhares de soldados aliados foram empurrados para a praia e lá foram resgatados por capitães voluntários de pequenos barcos convocados por Churchill  por falta de recursos da Marinha.


Não é  a guerra na tela mas o cinema. A trilha sonora indicada para o Oscar pressiona os protagonistas e espectadores para a situação limite do mais trsmendo susopense, onde o heroísmo pessoal cria o desfecho salvador enquanto chove a metralha e bombas dos aviões, os grandes navios são destruidos pelo inimigo e o mar pega fogo na pele e na farda em fuga.


Destaque para os jovens atores que tentam fugir ou salvar, o comandante do pequeno barco que perdeu um filho na guerra e toma decisões dificuldade esse monstro do Kenefh Branagh que mal mastiga as palavras e  move as linhas do rosto  para transmitir o terror e a segurança de um líder no pior de todos  os fronts, o da derrocada.


Filme estupendo. Cinema no mais alto lugar no pódio. Netflix.


Nei Duclós

12 de outubro de 2020

CULTURA, UM POEMA

 Nei Duclós 


Cultura não se ostenta como um casaco fino, uma jóia

como um diploma, um gesto largo, uma comenda

Não é para esnobar o semelhante ou ser maior do que Deus

esse pobre concorrente. Nem para ilustrar estante ou fazer bonito

em conferências. Outorgar títulos e receber tapinhas nas costas

Nem serve para provocar assombros e exclamações de espanto

ou fazer a maior cara de nonchalance, subir nos palanques

a verberar citações antes em latim agora em novos cânones


Porque é sempre assim essa vaidade de sabichões falantes

que copiam pensamento enquanto assinam obras do alheio 

ou pior, fingem que são bons demais para o país aos trapos

e que não são o retrato do monumento em torno, as ruínas

da nação que se foi nas mãos dos ímpios, espertalhões

posando em frente a grandes volumes jamais abertos

ou ágrafos boquirrotos a falar para a mocidade como se fossem 

o destino manifesto de gerações que eles mesmos jogaram no lixo


Cultura é outra coisa. Serve para habitar o espírito longe das luzes

e desmascarar os farsantes desse circo de esterco

Cultura é você lendo o poema no cais onde o amor se despede

por desistir do país para plantar longe da fronteira a semente tirada 

daqui, do baixo ventre. É o coração que sobrevive de olhos límpidos

púrpuro sopro que se confunde com a brisa do oceano e banha o interior

como salgada bênção. Essa é a cultura que recebi de mãos perfeitas,

a dos habitantes da grandeza que nos faz eternos. 


Cultura sem rebuços, complicada, clara como um sol que nasce teimoso

na extrema indiferença que vamos enterrar com nossa gana de dizer

e de fazer o que nunca foi feito. A salvação conquistada a cada minuto

nesse tempo inventado quando decidimos ser o que sonhamos

e retomamos a palavra solta que pede uma nova chance

e compomos o poema em lugares ermos, longe do ruído que mata

e no nicho da nação a qual pertencemos, esplêndido berço

hino informal, lírico e épico, que soa no amanhecer a flor sinfônica 



O ÂNGULO RETO

Nei Duclós 


Um dia esqueceram de me buscar na saida do Jardim da Infância. Família grande, dedicada, mas acontece. Minha casa ficava a quatro quarteirões e meio da escola, uma enormidade para quem, aos 5 anos de idade, não ultrapassava o meio metro de altura.


Hoje todo mundo me acha bonitinho nessa idade quando mostro as fotos, mas eu me sentia cabeçudo e de orelha grande. Deslocado num ambiente estranho lotado de crianças eu me escondia num canto para escapar das atividades.


Quando todo mundo foi embora no meio dia assustador e eu fiquei plantado em frente ao grande portão marrom de madeira prestes a fechar, imaginei que não seria difícil me deslocar até o almoço seguro e o quarto amigável.


Eu já era homem feito e só faltava uma decisão. Tinha a meu favor a cidade onde nasci e me criei, toda ela plana com ruas e calçadas retas e espaçosas. Bastava vencer a meia quadra até a esquina e dobrá-la, tomando o rumo sem erro do destino.


Ninguém dava a mínima para um pitoco com 15 centímetros de altura (o susto me apequenou) pois criança sozinha era comum no Brasil da época . Não havia perigo numa região central, pois a escola ficava em frente à frondosa Praça Barão do Rio Branco.


Plano arquitetado, lá fui eu até a esquina e depois despacito para vencer o trajeto de meio quilômetro. Com meu guarda pó branco, top enorme caprichado no pescoço, venci a dobra do ângulo reto e caminhei com meus sapatinhos pretos singrando o calçamento de boa qualidade.


Cuidei dos carros ao cruzar as três ruas transversais à retidão da Bento Martins, e finalmente cheguei em casa sem correr nem nada.


Bati na porta para fazer uma surpresa. Foi um berreiro de espanto e susto:

- O guri veio sozinho!


Fui então celebrado pela minha coragem depois que os adultos se xingaram pelo esquecimento.


Eu estava tranquilo, saboreando o momento. Falei que eu já era um homem feito.



DUAS TERRAS

 Nei Duclós 


A Terra é fixa no lugar onde se fixa

Plana porque o mar não sai da forma

Eterna pois sobrevive a apocalipses

Viva por colecionar ventanias

Tem memória nos seus vestígios

E inventa paisagens sobre ruínas


A Terra é  esférica porque assim dita o cânone 

E rola no abismo como desesperada

E viaja numa velocidade extrema

Em direção a Andrômeda onde tem encontro marcado


Ambas são redondas

A Terra plana em forma de disco

Dos velhos bolachões na eletrola

E a Terra esférica como globo de escola


A plana está no exílio

Prisioneira do nosso olho de peixe

E das lentes da 

Nasa 


A esférica é  livre e solta

Mas atualmente fica em casa de castigo


Duas Terras

Uma esférica, outra plana

Será que nenhuma delas se confirma?

E exista uma terceira, ou milhares delas

Em órbita na nossa mente insana?



11 de outubro de 2020

ANCESTRAIS

 Nei Duclós 


Pedras em forma de aves sapos tartarugas peixes

Rostos gigantescos impregnados na montanha

Grutas e palacios  subterrâneos 

Paredões em ilhas remotas

Cascatas como véus de noiva

Ilhas com recorte de golfinhos

Cordilheiras imitando catedrais

Calçadas ancestrais que levam a templos ocultos

Altares  pelos caminhos ou debruçados no abismo

Canalizações milenares de água ainda em funcionamento 


Tudo isso parece que são  vestígios ou ruínas

Mas é  apenas a primeira  civilização  humana

E sua arte incompreendida

Sua impressionante e secreta engenharia

Que habita entre nós 

Pálidos de espanto


RETORNO - Gracias ao pesquisador catalão Eliseu Lopes Benito e sua teoria Civilizacion Madre  El arte incompreendido)



O NÃO LUGAR

 Nei Duclós 


Quando dizem esteja onde estiver

É porque não está em lugar nenhum 

A morte não é  um lugar 

É sua ausência

Alguma porção de toda parte

É o não lugar


Alma que se separa não tem habite-se

A não ser na memória

De quem continua presente


Onde estiver na lembrança 

Lá estará quem não ocupa mais espaço 


Re/cordar

é reativar o coração 

Dar corda a quem foi ao ar

E acordou

Onde não se encontra



REMOTO PAMPA

 Nei Duclós 


Foste para o mais remoto pampa

com teus quadros histórias e poemas

Fotografando nuvens pássaros e sangas

cercada pelo fundo  isolamento


És a mulher deste louco tempo 

Distante em teu coração secreto

Próxima dos dias radiantes

Acompanhada pela chuva e pela noite

Posta em sossego e em  desavença 


Pois tens paz mas ainda bate o vento

Do amor que trazes dentro e só Deus  sabe

a quem pertence





SISTEMA

 Nei Duclós 


Luto contra o sistema, a solidão

Organizo piquetes e invasões  

Faço atentados, invento reuniões

Invado teus redutos

Faço discursos, mas em vão 


É maior a força da repressão

E acabo sem te ver, nem tomar o poder

Fujo para o exilio, o desamor



DO RISO

 Nei Duclós 


Tudo o que não entendem ou desprezam tratam como comédia


Mas o riso não vem do deboche, e sim da compreensão profunda do drama


No fundo do poço, onde a lágrima não funciona mais

E o desespero não é a salvação 

O humor emerge com seu poder de repor o que perdemos de humano



10 de outubro de 2020

ARRANJO

 Nei Duclós 


Já desconheço os amigos

Eles pensam assim ou enlouqueceram ?

Fui como eles e não me dei conta

Da insana medida de todas as coisas?


Para isso então sobrevivemos?

Para entregar a alma na política?

Para persistir numa utopia em ruínas?

Para deixar de sermos amigos e portanto humanos?


A culpa não é  dos reptilianos

Mas da nossa biografia

Que tanto amamos

O embarque em ilusões que cegam

A leitura de rotineiro enfoque


Eu saí dessa falsa roda

Aprendo violino com os anjos

Também é  loucura

Mas também toco banjo 

Dance comigo num clássico arranjo

Somos o povo, não se engane



9 de outubro de 2020

FORA DO QUADRO

 Nei Duclós 


Você oferece outras imagens

As que não se enquadram no teu perfil

Fotos de mulheres altas belas charmosas

Em poses de sedução e destaque 


Pois te sentes pequena mirrada baixinha

De vestido simples pouco acima do joelho

Blusa comprada em varejo

Cabelo sem frescuras joelhos adoráveis


Não sabes o dom feminino da tua verdade

Tua vontade, tua paixão maior do que as griffes e carrões 

Tens fogo no corpo de cabocla ou gringa

Inteligência de ancestral origem

Gentileza da humildade

E firmeza eterna 


Mulé, como dizem nas grotas

De faca na bota

mas é só o amor que falta a este mundo tosco 

Feito de aparências


Tenho consciência

Por isso ignoro as beldades que mostras

Quero tu, fêmea da peste

Com teus defeitos que são tua graça 

Basta te ver desfilando na feira

Com esse ar de interior sem marca 

Para ver teus súditos enamorados sem saber porque

Pois não estás nos calendários 


É esse vulcão fingindo geleira

Esse vento forte disfarçado de brisa

É essa coisa que me derruba

Bandoleira de cheiro acre

Perfume de mato

Cachoeira 


EXAGERO

 Nei Duclós 


A beleza é a tua  arte 

Ana de Armas

Brota de raizes profundas

De vidas longínquas

Que em ti desaguam

Como rios da montanha


És mar e existes 

por solidariedade 

ao meu barro disforme 


O Criador  soprou em nós

Teu rosto imortal

E o corpo que se aninha na extrema ilusão


 És a companhia  permanemte 

Com o perfume do sonho desperto

Exagero que nos acolhe

Na exaustão desses dias



DESABRIGO

 Nei Duclós 


Recomponho de memória o momento perdido 

Que eu deixei passar achando que o amor não passa 

Não há solidão  maior do que este desabrigo

Em que a falta de chão tira o teto mais firme 


Mas não vivo de novo mesmo que me esforce

O tempo é areia nos dedos, poema mal escrito 


Tens o remédio mas quebramos o vidro 

Fico nas mãos do perdão, aprendi a lição 

Aguardo a escravidão de ser teu sendo livre 



ANÚNCIO NA PRAÇA

 Nei Duclós 


Não levo a sério quando me apaixono

Deixo passar achando que não passa

É quando ela some

E arrancam todos os bancos da praça

para colocar out doors no lugar


Ponho minha foto onde houve namoro

Aqui jaz o amor, anuncio

E minha cara amarelece

como folha de outono


Enxergue o reclame

Aprendi a lição 

Cuidarei da relação como um pit bull

cuida sua dona  



8 de outubro de 2020

SOBRE A POESIA

 Nei Duclós 


A poesia não está a serviço da política nem de nada ou de ninguém. Também não compactua com as posições de ter lado ou ser isenta. Ela é onívora, encarna tudo o que é humano. Está acima, abaixo, distante, próxima de tudo o que existe, nasce, morre. É feita de palavra, das suas origens e transformações, dos usos e abusos. Não pode ser enquadrada pela mediocridade dos interesses provisórios ou permanentes. Não combina com cartilhas nem palavras de ordem. 


Sua força é a liberdade impulsionada pela sonoridade. É música, com e sem partitura. Tesouro de nações, perfil de espíritos intensos. Combativa e recolhida, explícita e no resguardo, cinza e de todas as cores. É preto no branco, é tranco e barranco. Não a esqueça na gaveta, não finja indiferença. Não é supérflua, comportada nem simples transgressão. Pode ser sóbria, assombrosa, leve, forte. Incorpore sua natureza selvagem, marca de uma civilização.


Poesia. Porção de eternidade no universo frio e de pedra. Forja de criaturas. Insanidade e lucidez. Dor e transcendência. Amor e conflito. 


7 de outubro de 2020

BLADE RUNNER 2049: NO ESCURO DO CINEMA

Nei Duclós


A memória de um talismã da infância é a garantia de que somos reais. É o segredo mais profundo da nossa existência.Pode ser um trenó como o Rosebud em Cidadão Kane (de 1941) ou o cavalo de madeira em Blade Runner 2049 (de 2017). A diferença é  que a lembrança do trenó  pertence apenas a Kane e morre com ele.

Enquanto a do cavalo é compartilhada.


O diretor Denis Villeneuve do jovem caçador de androides (Ryan Gosling) que encontra o original (Harrison Ford) é uma enciclopédia do cinema. Ele não cita ele incorpora. O hotel abandonado onde Ford vive escondido é o Iluminado de Kubrick. A exasperante salvação no carro inundado é  do filme de detetive A piscina. As estátuas femininas gigantescas são puro Fellini. A lista é  extensa. Há  tiroteio de filme policial e faroeste, lutas de Bruce Lee, cenas de filmes de boxe (onde um lutador desiste de revidar como em Gladiador, dos anos 90).


As ruinas dos cenários assombrados pela influência da solidão em De Chirico não são as ruínas do mundo, mas do cinema. Porque o cinema formata a percepção que temos do mundo, mas o mundo é  outra coisa. O autor dessas histórias sinistras de Philip J. Dick, que eram futuristas e hoje são contemporaneaas, desenhou esse caos urbano poluído de ar cinza, o domínio dos robôs, a frieza e o sofrimento de quem perdeu  a alma.


Nos filmes antigos também havia personagens que não tinham coração, mas procuravam tê-lo.


Só que a magia de OZ (1939) se perdeu. A nós  resta a companhia  virtual de Ana de Armas, que está maravilhosa no final, fazendo a personagem que se sacrifica por amor. No escuro do cinema , Ana brilha provando que somos e sempre seremos humanos, por maus falsa que seja nossa identidade. Ana é  como um talismã da sorte, a garantia que estamos vivos.



6 de outubro de 2020

ROHWEDDER: O PIO DA CORUJA

Nei Duclós


ROHWEDDER: O MOMENTO EM QUE A ESPECULAÇÃO FINANCEIRA SE ALIOU AO REGIME DETONADOR  DE EMPRESAS 


A indústria financeira especulativa de arrocho das dívidas impagáveis de juros extorsivos  adora a ideologia incompetente para os negócios mas agressiva na política. Não se trata de esquerda ou direita, mas de corrupção e ganância. Capitalismo - o regime do livre comércio e da prosperidade em ambiente democratico, e socialismo - a justa distribuição de renda em ambiente econômico  dirigido pelo Estado, levam a culpa, mas o buraco é  mais embaixo, lá onde a coruja pia.


ROHWEDDER, a reveladora, minuciosa e competente série da Netflix, mostra como o assassinato do bem sucedido  executivo da Hoechst foi obra não do terrorismo de esquerda da RFA, por questões ideológicas, nem da desmontada polícia Stasi da Alemanha Oriental, por vingança. 


Mas sim por um movimento dentro da Alemanha Ocidental e dos investidores locais ou estrangeiros  que se beneficiaram do atentado.


Rohwedder estava monitorando a adaptação de uma economia socialista para uma competitiva de mercado. A privatização e demissões eram um dos seus itens. Havia outras opções, pressionadas pelo movimento operário de massa.Com sua morte 94 % das empresas do país invadido foram privatizadas. E as reivindicações dos trabalhadores se esvaziaram, pois levaram a culpa de terem colocado Rohwedder contra a parede.


Foi um massacre. Os cidadãos do pais socialista, ao se atirar nós braços num regime democrático de bem estar social, descobriram que foram dominados pela exclusão e a pobreza. Esses são nossos irmãos que iriam nos defender? se perguntavam. Com a URSS em dificuldades financeiras, Gorbatchev vendeu a Alemanha Oriental para Helmut Kohl por alguns bilhões de euros a fundo perdido, isto é, sem garantia de retorno.


Agora entendemos porque Soros financia a esquerda, que ou age por convicção e muitas vezes de má fé.



CANÇÃO OCULTA

 Nei Duclós 


Você canta as músicas que faço 

Na minha insana fantasia

Tua voz entoa o verbo oculto

Que só você  enxerga

Fico tímido pois não estou acostumado

componho para ninguém 

Continente isolado


Aportas com o violao

Ao fim e ao cabo

E tornas eterna a canção calada 


Verdade é a tua recepção

Ao trovador mendigo

Choras quando te digo 

Que compus tudo em outra encarnação 

E acordei no deserto

Até você chegar, flor de cacto


5 de outubro de 2020

ANTIGO

 Nei Duclós 


Tão antigo que sente vergonha

Como a pedra que se veste de liquens

Como nuvem atrás da montanha

Como pássaro que se protege da chuva


Tão estranho no mundo que não reconhece

Migrante em praça de guerra

Viajante que ficou para trás


Tão insano por ter se perdido 

E procura o banco do primeiro namoro


Teu rosto esquecido

Amor que não morre



MUTAÇÃO E BARBÁRIE

Nei Duclós 


Foucault explica na sua arqueologia da linguagem, que é  este grande livro As Palavras e as Coisas, que a representação assume a identidade do representado e dele se separa ganhando vida própria. A palavra mesa substitui o objeto designado como mesa.


Aconteceu na economia. A indústria financeira nasce do capital produtivo e dele se separa desdobrando-se numa metástase que deságua no Ocidente em George Soros e nos créditos podres da  crise de 2008, e no Oriente no sistema predatório chinês.


Quando os alemães orientais se jogaram nos braços do que acreditavam ser um capitalismo weberiano temperado pelo Estado do Bem Estar social, acabaram caindo nas garras da especulação hegemônica dos tubarões da política e da economia ocidental.


É o que mostra a série Rohwedder na Netflix. Excelente documentário sobre a destruição do estado socialista alemão, que caiu pelos seus próprios erros, e foi subjugado pela eficiência e brutalidade da economia de mercado.


CONCEITOS

 CONCEITOS

Nei Duclós 


Conhecimento não é  sabedoria .

Saber não é  entender, é  enxergar  com clareza o que foge ao entendimento


Estudar o que não gosta, ler o que é complicado, para compreender mais tarde, quando a ficha cair de madura, cedendo ao esforço de compreensão. 


Ensinar o que tem dúvida, aprender o que não deve, jogar para dar sorte.


Explicar o que é  obscuro, expor o oculto, cobrir a nudez do espanto.


Voar se houver espaço, pousar longe do alvo, cair pelo avesso, subir num só  mergulho.


Viver quando não deixam, voltar se houver arreglo, partir se o amor atira, seguir só por esporte.



2 de outubro de 2020

EM TEU OUVIDO

 Nei Duclós 


Falo amor em teu ouvido

Enquanto o mundo despenca

E eu perco a embocadura

Da palavra mais precisa

E saiba só o sussurro

Como gato que ronrona

Esquecido de ter sido

Algo além de estremecido


Falo amor em teu ouvido

Como último recurso

Depois do desaprendido

E da ruptura mais funda

Minha voz, resto de briga

Ficou assim, sem futuro


Não pense que a poesia

Dará como resolvido

Esse nó que está ativo

Por todo o corpo moído 

Mas por acaso é meu rumo

Quando tudo está perdido


Falo amor, enquanto a dor fica o dito por não dito



PRIMEIRA LUA

Nei Duclós 


Primeira lua de Outubro

Espia por sobre o muro

Pede que eu leia um poema

Na noite que é seu rascunho

VOANDO

 Nei Duclós 


Setembro passou voando 

Mas o ano está demorando

Pior é quando vier janeiro

E tudo ficar na mesma


Passaste por minha vida

Fingindo que voltarias

Espero tua primavera

Neste tempo  sem remédio

1 de outubro de 2020

AO REDOR

 Nei Duclós 


Chegou outubro

Título do meu primeiro livro

Tema do meu melhor poema

Mês da morte do meu filho


A longevidade é quando a vida  cobra a  conta

E não temos cacife

para cobrir o rombo


A lenda cede e cai o mito

A ilusão se rende sem substituto

O que é real assume o pesadelo


Desses materiais tiramos

o escasso sustento 

A  raiz grudando na pedra

O vento fustigando a lua

A soberba que se torna manca


Por isso é  estranha essa dose de esperança

Feita de cobre e fios de mármore


Nada nos compensa pois a perda é  enorme

Só que ainda respiramos

o alento que um dia foi divino

por força da Criação

E hoje é  humano como um cão ao redor

Um deus faminto

28 de setembro de 2020

GÊMEO

 Nei Duclós 


A Primavera, estação das flores

Tem uma irmã gêmea 

Cinza e chuvosa 

Com o mau humor de ventos e frio


Idêntica a mim

Que cultivo uma sombra do que sou

Um sujeito ruim

E pecador


Escolha o bom

Porque o mau eu resolvo

onde estou


Sou meu próprio irmão

Ele é  quem provoca pena  

E conselhos do viver bem

Não perca tempo

Salve quem me esforço ser

Já que o outro

se condena


27 de setembro de 2020

CRESCENTE

 Nei Duclós 


Vi a lua crescente

Nó céu do extremo setembro

Estava no alto, pingente

Nó teto espesso da noite


Lembrei de ti, confidente

Que repartiu bons momentos

E hoje já não alcanço

Quase não vejo, de ausente


Aguardo a fase da cheia

Quando surgires de pronto

Amarela de tão brilhante

Moeda rara de ouro


Falei que és glória do gênero 

Quarto que guarda um tesouro

Teu corpo na cama ardente



26 de setembro de 2020

FELINA

 Nei Duclós 


Fico de tocaia no sentimento 

Qualauer movimento atiro 

Flor do pântano 


Felina arisca

fingindo indiferença


Gasto meu tempo

A lua torce por mim

Depois some

Idêntica a ti 

Luz que vira sombra

E dribla minha atenção 

De sol poente


Estrela que eu capturo

Cadente



25 de setembro de 2020

TONTO

 Nei Duclós 


Não tenho um amor

Desde que partiste

E me deixaste tonto

Sem saber o que fazer da arte

que me ensinaste: 

o poema de amor

meu desvio de  conduta

Pois eu era Maiakovski e virei árcade


Gentil pastora 

Não tenho terra ou gado

Desaprendi de atirar, deixei de ser soldado

Hoje sou inútil burocrata 

Carimbo passaportes sem vocação de viagens


Se vieres de Paris estarei de guarda 

Na entrada de um aeroporto pálido 



SAUDADE

 Nei Duclós 


Sinto saudade, mas nao devia

Ja acostumei sem tua companhia

Nossa conversa sobre Deus e o mundo

Os passeios no barco ou na ferrovia


Pegadas no meio de praças perdidas

Beijos que estalam só de alegria

Tua ansiedade em minha camisa

Minha paixão sob o teu vestido


Teu cabelo no ombro, bandida

Olho de mel, gata em suspiro

Saudade por que? Nao ha motivo

Tua carta não chega, chegará um dia


LOGO CEDO

 Nei Duclós 


Chamam de amor o que sinto cedo

mas é  só celebração por acordar contigo

Dividir  o pão e o café na mesa

Arrumar a cama posta em desassossego


Estivemos a mil a noite toda

e o sol nos cumprimenta com um sorriso


Bom dia então amor

que é  esse o termo


24 de setembro de 2020

ANÔNIMO

 Nei Duclós 


Arrisco o poema torto

Porque o certo desaprendi

Assim fico mais perto

Do que eu vivi 


Na ruptura caio em mim

Instável literatura 

Sem torre de marfim


Anônimo, caminho rente ao luar

Há flores, que esqueço de te dar

Sou urso na piracema

Do teu amor



23 de setembro de 2020

NO POÇO

 Nei Duclós 


Ser expulso do amor,

como um criminoso

Sem saber o motivo


No fundo do poço sou a imagem que evitas

jogando na água tuas prendas de moça,

teus brincos de ouro


Tua voz que me chega como na tortura

quando me afogo sem fim nem começo



21 de setembro de 2020

ALTAR

 Nei Duclós 


É sagrado o chão onde pisas 

Pois a arte exercida por ti

Civiliza

O bruto gesto de quem te admira


No altar da tua obra

A devoção sem nenhum conflito

Nem religião 

Apenas o talento, esse dom

Que transformas em criação 

E alimento


Não sabemos quem és 

Tua liderança vem do espírito 

Unção humana em rosto divino 

Anjo ou mulher  és meu caminho

Sou teu coro de vozes

Sem conflito


Tenho a semente do teu acervo

E por milagre nasce em mim

Este poema



NADO LIVRE

 Nei Duclós 


Não dá pé o amor que ensaiamos

É algo perigoso onde o  corpo afunda

É não volta à tona, fica por isso mesmo


Tentamos bóia, barco ou cais do porto

Mas não é  seguro, sentimos muito


Nado de peito, de costas ou mergulho

É risco e prefiro ser adulto 

Vou secar o mar e deixá-lo  insepulto

Assim nos salvaremos, sem pedido de socorro.


20 de setembro de 2020

BANDA

 Nei Duclós 


O poema é  o biombo onde me escondo

Feito de vidro 

Comigo à mostra

Como display em loja antiga

Canetas tinteiro, discos de vinil, fogareiros


Já falaram para eu fechar 

esse comércio inútil

E me dedicar a uma padaria

Ser motorista de van

a transportar cachorros 


Mas só saio daqui quando for chamado

pelo Tempo, o deus Cronos

Que vai colocar em meu lugar

Um shopping center

A não ser que uma hecatombe, uma pandemia

mude tudo

Sem ninguém se dar conta

Aí haverá choro e ranger de dentes


Minha contribuição para cair de banda

É a poesia



19 de setembro de 2020

ENROSCO

 Nei Duclós 


Cedo despertas, mas não cedes

qualquer margem do teu desejo

Não sou o alvo, sou o canteiro 

Onde exerces tua natureza

De flor a pleno, perdição do ermo


Não me conformo, sinto ciúmes 

E aproximo pedra em vez de húmus 

Falo por ervas que te assediam

Pois não te colho, pétala de sonho 


Não há solução para este enrosco

Dependes de mim, que te acompanha

Não me reconheces, plantação estranha


Eu então me vingo, namoro a Lua

Mulher madura, mas ainda moça 



18 de setembro de 2020

DESFORRA

 Nei Duclós 


Um amor desses eu não jogo fora

Nem preservo na minha memória 

Um amor desses eu vou à forra

Como escravo liberto ou general da Espanha


Penetro  nos redutos de Helena de Tróia 

Roubo o pomo no pomar sagrado

Qual Hércules que o trabalho dobra

Ou Teseu com o fio de Ariadne


Percorri toda a mitologia

Para estocar tua lenda no arquipélago 

Desço do navio com as Amazonas

Venho te tirar do gigante bárbaro


Mas não sou o marco civilizatório 

Apesar das medalhas e vitórias 

Pertence a ti ganhar de toda sombra

Só com teus pés subjugando o herói 


Sou Prometeu em busca do fogo

Que já tinhas, alimentando Zeus

Não desisto de invadir o Olimpo

E te trazer na próxima aurora



LIVRE ARBÍTRIO

 Nei Duclós 


A pandemia entortou as pessoas 

Estragou as gentes 

O que estava em repouso desperta em fúria

Colocou todo mundo em confronto

O diálogo é  o mal entendido

A relação é  a ameaça 

A burrice alcança status de loucura

E a cultura torna-se  obsoleta 

por falar em outra situação 

Que não mais se sustenta


Vivemos sob suspeita

Os ladrões aproveitam

E o tecido que costura as famílias se esgarça


A esperança deu um tempo

A saudação anda armada

O grito no lugar do sussurro

Em vez de amor, raiva


Terá sido a pandemia

Ou somos nós  com a chance de ver o que estava implícito?


Acordo contigo em uma remota vida 

Enquanto o mar parece também ter enlouquecido


Só o que resta somos nós 

Livre arbítrio 

De um Deus que é nosso vizinho

E faz barulho  



17 de setembro de 2020

PARADO

 Nei Duclós 


Parei no tempo

Por descobrir datados

Quem pretendia superá-lo

Revolução em conserva 

Com jargões de lata

confundidos com o ouro da linguagem


Trouxeram livros armados

Para interromper a poesia

Ou colocá-la a seu serviço 

Mas o poema se manteve

como bruta semente


Por isso não pergunte para onde vou

Ou de onde vim

De que luta ou lado

Nasci torto como árvore no pampa

Onde pousam pássaros 

Vindos de todos os quadrantes


Parei no vento



SOBRESSALTO

 Nei Duclós 


Chove pesado na alta madrugada 

Estrondo de tanta água 

Cheiro de terra molhada

Quarto cercado de sombra

Acordo num sobressalto

Esqueço o sonho recente

Confundo pele e a mente

Não devo dizer o que sente

O verso embaixo da terra


Já sabes o que reserva

O próximo passo do tempo

O sol no céu encoberto

O dia impondo mistério 



16 de setembro de 2020

SOBREVIVENTE

 Nei Duclós 


Afasta o passado de mim

Sobrevivente

Que eu viva o presente

Sem lembranças 


Passar a vida em branco

Longe da Terra

Para que nenhuma lágrima 

Me doa



15 de setembro de 2020

PANDORA

 Nei Duclós 


Já escrevi coisas que não entendi de pronto

Só com o tempo amadureci o bastante 

E o verso que era sem sentido se revelou


É assustador, meu pai

Pescar de barco na correnteza

Sob ameaça da Lua

Que promete segurar o sol

Para impor a eterna noite


Queira Deus que os anjos assoprem apenas palavras de amor

E não esses mistérios revoltos

Numa caixa de Pandora


DECISÕES

 Nei Duclós 


A vida são as decisões que tomamos

Todas erradas

Por isso essa velhice braba

Esse afogar na mágoa

Esse remorso amargo

Essa dura memoria

Sal de um tempo torto


Por isso esse amor

Que não acaba


14 de setembro de 2020

VIRTUAL

 Nei Duclós 


Não queres mais  conversa

Transformas meu poema em prosa

E depois fecha a porta para as metáforas


Deste um prazo, foste embora

Amor virtual é  fácil de cortar o laço 

A falta de abraço não dói 

Qualquer coisa dá um  block


Só que o sentimento é presencial

Em qualquer plataforma

E sangra, mesmo sem provas


No fim o corpo é  uma ilusão 

Flor da minha alma

Levado de roldão

Na inclemência da tela



13 de setembro de 2020

NA MARGEM

 Nei Duclós 


Despojar-se

Mas sem testemunhas

Nem mesmo tu

Olhando-se no espelho


Perder o hábito de expor-se

acumulando memórias 

Viver fora do eixo

Na margem extrema


Ser visto só por Deus é  um teste

Normalmente reprovamos

Pois o divino olhar, que é  criador

vira-se para outras coisas

E o ego não sabe o que fazer

com os despojos

O que o mar devolve

junto com as flores 



12 de setembro de 2020

GRAVURA

 Nei Duclós 


Um olho é curioso

O outro assustado

No pacote do rosto

Se salva o sorriso

Ninguém nota a extrema

Diversidade 

Que emites na tela

Com tanta verdade


Mas eu me aproximo 

Da tua imagem

Aumento um pouco

Para ver os detalhes

Tão bela e anônima 

Perfil sem  alarde


Só que eu gravei

Todo o conjunto

No meu sonho

Sem nenhuma

piedade



O DESPERTAR

 Nei Duclós 


Nasceu num tempo em que todos os vivos estavam mortos

Trouxe motivos para continuarmos existindo


Se foi seguido não sabemos

Mas acredito que ainda estamos aqui

Graças a suas profecias

Que talvez nem se realizem

Mas são animações que despertam vulcões extintos


Não nos revelou o sentido da vida

Porque tinha limites

Sua força vinha de algum lugar aqui perto

O infinito


Depois voou

Levando junto a dor que acabou comigo



RETRATO

 Nei Duclós 


Aprendo a conviver com uma versão piorada de mim

Hoje sou minha banda cover

A pintura falsa do quadro que fui


O original está perdido no tempo

Em fotos que também são versões do que existia


Seria eu mesmo o que lembro

E define minha identidade para quem não me vê há tempos?


Ou a verdade é  esse retrato mutante que não lamenta o passado

E enxerga pouco, ouve só de um lado

Mas te espera na estação abandonada

Com o último ramo de flor esquecido pela eternidade?


PÁSSAROS

 Nei Duclós 


As semanas passam

Como os bandos de pássaros

No céu da minha infância 

Alinhados no mesmo ritmo

Ainda estarão voando

No firmamento da memória?


Vão-se os sentimentos

Deixando um vazio de nuvem e de vento

Fica este eterno presente

Que o tempo embrulha

a cada inverno


Cruzo a existencia

Imóvel diante de tanto assombro


A vida é o beijo

que a morte não alcança 

E o desespero é  um peixe se debatendo 

Na areia empurrada pela onda

De um mar que namora a lua

No fim do mundo


10 de setembro de 2020

THE POST: QUANDO O JORNALISMO ATINGE O OSSO

 NEI DUCLÔS 


Tudo conspira contra a publicação do relatório McNamara sobre o Vietnã pelo jornal da capital, o Washington Post. Primeiro, o massacre da concorrência, pois o furo era do New York Times. Depois, a situação financeira delicada do jornal, que precisou abrir o capital sem abrir mão da propriedade familiar.  A viúva (Merryl Streep, monstra) não tinha credibilidade suficiente para convencer os investidores.


Havia ainda o medo da prisão,  pois publicar os papéis do Pentágono que foram proibidos de serem divulgados pela Justiça de Nixon depois da bomba revelada pelo NYT. É ainda outros empecilhos como o envolvimento tanto da dona do WP quanto seu diretor de redação (Tom  Hanks, perfeito como sempre) com os poderes máximos da República. Sem  falar nas notícias superficiais como casamento da filha do Presidente,  entre outras bijouterias. Havia má vontade da Casa Branca contra i jornal que o criticava mas ainda não tinha influência nacional.


O que faz o cineasta (Steve Spielberg, gênio) para que seu filme reporte a trajetória do jornalismo para atingir o osso da notícia, sua essência, sua razão de ser? Faz cinema

 Ou seja  concentra a ação no andar dos protagonistas. Hanks sai abruptamente das reuniões e anda apressado pela vasta redação em polvorosa. Merryl expressa a elegância e a fragilidade da sua posição de herdeira de um Império prestes a perder tudo com seus passos lentos mas decididos.  O jornalista (Bob Odenkirk, de Better call Saul, ótimo) que acessa a fonte, corre para um telefone público ou tenta driblar em meio as mesas o advogado que quer impedir a publicação. O foca quase é atropelado quando cruza a rua correndo para espionar o NYT.


Mais  cinema: o início do filme é Soldado Ryan e Apocalipse Now. A busca da informação é Todos os homens do Presidente. O clima e o desfeccho e puro filme clássico noir.


Há mais: o centro da trama e a coragem da mulher assediada que estava indecisa. Ela descobriu que deveria optar pelo jornalismo e não pelas amizades com os políticos. Para isso deveriaassumir a empresa herdada e seus riscos e respeitar a lei da liberdade de expressão,  ou seja, a opinião pública e as decisões da redação. O dono de um jornal só manda se a liberdade for soberana. Sua saída vitoriosa descendo as escadas da Suprema Corte, filmada em meio a multidão de mulheres, é uma cena tocante desta obra prima ( não por ser perfeita mas por tocar no ponto exato da democracia) a cargo de Steve, Merryl, Tom, Bob e todos os envolvidos. É  um privilégio sermos seus contemporâneos.


Nei Duclós

9 de setembro de 2020

ESCOLHA

 Nei Duclós 


Há palavras que melhor definem 

A ponte que liga as criaturas

São mais sinceras e limpam equívocos

Mesmo que sejam estranhas à primeira vista

E acabem rompendo o vínculo

pelo mal entendido 


Por exemplo: amada é melhor que amiga

Aduba o que a outra esteriliza

Confessar amizade é pouco para almas aflitas

Significa afastar-se

da chance de salvar o dia


Enquanto isso, sugerir amor mesmo sem namoro 

É de natureza mais íntima

E empresta graça ao desconforto

(quando evitamos o que está pedindo)


Ris das minhas especulações insones,

desconhecida

Não comente, ou estaremos fritos 



VESTES

 Nei Duclós 


Como haverá desejo se estiverem sempre nus?

perguntou o anjo que inventou a roupa

Atração é quando alguém se veste

E sugere a diferença que permanece oculta


O que é  selvagem não basta ao bote

É preciso sedução acima da besta

Uma renda rasgada, a falta de um botão 

Uma curva criada pela impostura da saia


E há o batom, a pele tatuada

Cabelo nos ombros e soutien

E o mais importante, a palavra


Não falo do gemido ou do êxtase silábico

Mas da sintaxe ou da gramática

Sujeita, predicada e verbo

Ação devotada em poema arcádico  


Graças, mulher tão bela

Graças ao poeta

Vestido aos pés  da tua estrela 


TUS OJOS

 Nei Duclós 


Tus ojos tienen el frescor de las mañanas

Tu cuerpo es árbol, agua de montaña

Soy tu pájaro que sube hasta las nubes

Dices amor e el mundo se transforma

Es la primavera muy temprana



ANOTAÇÕES

 Nei Duclós 


Os encontros só incluem despedidas

Chegamos tarde para os  cumprimentos

Minutos que sobram não são de alegria

Viram as costas evitando o início 


Talvez seja por erros cometidos

Quando  havia tempo antes da pandemia

Não estávamos atentos, deixamos para outro dia

E agora que precisamos

a praça está vazia.


Sentas no banco do inverno medonho

As árvores gostariam de fugir

Mas ficam te fazendo companhia 


Até os cães passam ao largo 

Os automóveis nem sequer buzinam

Não há reuniões na cidade morta

Bebes a solidão de um vinho antigo


Alguém te dá a mão, anjo adventicio 

Passa anotações que fizeste na vida

Lá está teu coração que tinhas perdido


8 de setembro de 2020

ADVERTÊNCIA

 Nei Duclós 


Empresto a musa que não me pertence

Porque mulher é dona de si mesma

Menos do sonho da sua presença

Onde ela anda conforme combinamos


Empresto mas devolva pois eu vi primeiro

Tenho precedência com meu jeito insano

Acho que apito em jugo de princesa

Sou só a plateia em outro planeta


Não ache que pode dizer besteira

Ela não existe para ouvir teus chistes

Sua arte é a beleza aliada ao talento

Personagem de deusa de nobre inteligência 


Conforme-se em admirar em papel idêntico 

Ao que desempenho nessa corrente

Ela nos civiliza, brutos arrogantes

Homens sem carisma e de coração ardente


6 de setembro de 2020

LEITURA

 Nei Duclós 


O pensamento como arquitetura do poema

Sustentado pela palavra e seu sistema

Interna mas como chuva lá  fora

Que provoca o fogo na lareira


Achei que tua leitura fosse amena

Porque gostas das luzes indiretas

Sobre papéis ainda em uso


Mas é só abuso do teu conhecimento

Procuras nos livros o que te sobra

De pura inteligência, ser feminina

não vem ao caso

A não ser quando te preservas

Fingindo ser burra

Para que fiquem em paz com suas loucuras

Enquanto mergulhars na literatura

Nos ensaios e todo tipo de cultura


Para depois me ensinar na minha preguiça 

Pois nada leio, só faço poesia

Para te encantar quando fechas o livro


CINEMA Ê...


Nei Duclôs 


Quando fingem que não estão sendo filmados


Quando denunciam a presença da câmara achando que isso é a realidade


Quando a imagem nasce da palavra e se desprende da sua origem ao entrar em movimento


O que fica na mente depois que o filme acaba


Quando o ator assume o personagem sem fingir 


Quando vamos ao cinema


Quando é diferente do texto sobre cinema


Quando tem um único foco, o próprio cinema


Quando a disposição do cenário em função da narrativa é confundida com reconstituição de época 


Quando não é teatro, portanto não tem pano de fundo. Tudo o que aparece na tela é  o cinema


Quando tentam, em vão, defini-lo


5 de setembro de 2020

NO AEROPORTO

 Nei Duclós 


Quando nos reencontramos

Não sabia o que fazer com as mãos 

Se continuavam ocupadas com as malas

Se eu devia te pegar de alguma forma

Tocando teu braço ou rosto

Ou se deveria procurar a passagem do avião 

Que nos levaria para o mesmo destino

Apesar da falta  de combinação 


Foi só coincidência

E quando enfim o abraço nos grudou

No aeroporto pasmo diante dos amantes rompidos

De repente redescobrimos o amor

Cão farejador que se recusa a ocupar o bagageiro

E senta conosco a lamber-nos a cara machucada pela solidão 


VERGONHA

 Nei Duclós 


Sentes vergonha mas não devia

Fecho meus olhos talvez ajude

Assim ficas livre e eu me poupo

De ver tua carinha se desmanchando

Quando bate o sino


Gosta mas nega a mulherzinha

Jogo de presa e predador faminto

Tens um nome a zelar, uma postura

E receias que eu diga aos quatro ventos


Eu me contenho apesar do orgulho

Não acho vantagem entronizar o êxtase 

Basta que durmas em meu ombro enorme

Depois de arrepender-se da refrega


Sentes vergonha mas não aguentas

Tua pele sem as mãos do bruto escriba

Por isso voltas ao sofá da sala

Exibindo a saia até o umbigo


4 de setembro de 2020

MATILDE

 Nei Duclós 


Matilde cruza o deserto do México 

Com toda sua equipe teatral, que dirigia com mão de ferro

E dois Josés

O marido dramaturgo e diretor

e meu avô ainda no berço 

Precisava chegar a Vera Cruz e lá pegar um navio rumo ao Peru


Sentia-se expulsa do pais

Devido a uma desavença com o governo

Naqueles tempos obscuros 

Migrar para longe era sua única saída 

Já que não  podia voltar a Cuba onde perdera o pai Gregorio, ator, de  uma doença tropical

Ou à  Espanha onde maus empresários a aguardavam


Mas foi assaltada e sequestrada por bandoleiros

Que levaram tudo

E resgatada a peso de ouro


Conseguiu chegar ao navio que no trajeto enfrentou um motim da marujada contra o capitão 

Grande atriz, convenceu os rebeldes a  baixar as armas


E foi assim que ela inaugurou no Peru sua saga nos países da América do Sul


Matilde é  minha bisavó 

Heroína de toda uma vida dedicada aos palcos

Foi rainha, mãe, esposa, empresária 

Mulher de veludo e aço

Coração que abraça a coragem


TESTEMUNHAS

 Nei Duclós 


Foi o que restou da tua companhia

Esses poemas que guardo no acervo 

Testemunhas de um tempo vivido 

Na beira do sonho

E ele era abismo  

UMIDA

 Nei Duclós 


Você diz que some

Mas é  coincidência 

Logo agora que  cheguei bem perto 

Você usa sua poção mágica 

O silêncio 


Desconfio que é  só um expediente

Para evitar minha dança da chuva em teu deserto

Tens outro sítio onde festejas com os outros

Viajante a pé espio pela janela

Lá estás, gargalhando


Ao cansar dessa viagem voltarás

Para molhar-te


PROJETO


Nei Duclós 


Tenho pressa

O amor passa pelas frestas

Por debaixo da porta como sombra

Como vento vindo da floresta

Como grito sufocado atrás do monte


Não detecto a fonte desse passo

Talvez seja tu ou minha mente

Que inventa sentir em horas tontas


Atrapalhado no projeto

Perco a  chance de capturar a folha

Desgarrada que em espiral me tenta


Tenho pressa de amor

Mas ele escapa


3 de setembro de 2020

DIFERENÇA

 Nei Duclós

 

Sempre digo amei para não dizer amém

Assim não me confundes com devoção

 

Amor não é  religião,  se fosse eu estaria de joelhos

diante da tua imagem

E teu corpo seria meu templo

Amor é exemplo da Criação

Gênesis cheio de defeitos

Que começa no prazer e enfrenta o conflito

Arcanjo da separação com espada de fogo

 

É jogo de emoção, humana contingência

A divindade se retira e descansa

Ficamos sós com a árvore da ciência

Entre a pomba e a serpente

 


 

SERENA

 Nei Duclós

 

Jogaste fora o amor, comigo dentro

Já era um traste comido pelo tempo

Marcado menos pela dor do que pela indiferença

Os hábitos de deixar de lado a cura das ausências

Agora estou no limbo onde mora a esperança

De sair dele e precipitar-me

Não em busca  do sonho mas da confidência

 

Repartir contigo, nova amiga distante

o impossível namoro e a carga da noite

Não temos mais jeito de seguir em frente

Ficamos na praia, solidão em ondas

O mar nos ensina a cair no poente

E a levantar com a brisa da manhã serena

 


ALÍVIO

 

Nei Duclós

 

Não sei a quem amar e a que horas

O corpo está vazio, copo da aurora

Onde verte o mel no dia frio

 

Palavra que não há

jogo de esgrima

Para estocar o fel

E a purpurina

Mistura de abandono e rima pobre

É só a sóbria solidão do cabra

Armado de facão e ordem escrita

Por um escrivão cego e convicto

A cumprir pena por não fazer sentido

 

Não sei se me perdi

Ou se estou vivo

O fogo roubado em Prometeu

É meu alívio

E aguardo a ave de Afrodite

Comer-me o fígado

 


1 de setembro de 2020

FORMOSA

Nei Duclós 


Cuidas da cura da tua alma

Ferida funda que te deixa amarga

O tempo não cicatriza nem consola

Sabes onde a dor conserva

o alimento que te desespera

 

Nada posso dizer

Já tens quem repartir o desabafo

Posso apenas

postar em tua pele de tormentas

o verso que cultivei te achando solta

Como folha em dia de vento e flor formosa

 


PRINCÍPIO

 

Nei Duclós

 

Viver é uma questão de três refeições por dia

Um teto e roupas

Água para beber e o banho

 

Depois disso  vem a segurança

A educação e os livros

As canções e viagens

A História e a glória

As festas e conversas

A saúde e os conflitos

O futuro e a família

 

Só por último  vem Deus

Que estava ali

desde o princípio

junto com a Economia

 


DESPERTAR

 Nei Duclós


Acordar renova

O dia começa sem memória

O sol esqueceu e lava a cara

A palavra é o amor na mesa posta

 

Depois você lembra mas já é  tarde

A vida traz uma outra história

Estás no próprio  tempo, o presente

E na hora do almoço ela te espera

 


 

31 de agosto de 2020

TUA ARTE

 Nei Duclós


És feita de unhas roxas e arranjo de flores

Mas essa não é tua arte

Feita de amores variados e amizades drásticas

Todas fantásticas

Mas essa não é  tua arte

 

És feita de pele mediterrânea e cabelo de ouro

Cultivada em viagens pelo mundo

Jerusalém Mar Morto Monte Carlo

Jamais Paris que em ti não cabe

 

Pesas na maquiagem para ir à ópera

mas essa não é tua arte

 

Tua arte é quando sou o alvo

Ao te querer sem desconfiar

Que entre tantas de ti és única

Com teu jeito de touro ariano

O que chega primeiro em Pamplona

E rasga o ventre do infeliz palhaço

 

Mas sou resistente

E aguardo que canses, açúcar demerara

Disfarçada em mulher má e impaciente

Sei onde pousa teu pé no sofá da sala

Lá permaneço em guarda, miserável gato