Um filme medíocre, meloso, que encanta as plateias porque
usa o mito ancestral, o da Cinderela, repete jargões de outros sucessos do
cinema, tem a aparência politicamente correta (a impiedade humanitária do tratador
para com a vítima que ele cuida), se sintoniza com comportamentos emergentes e
contrapõe migrantes e conservadores numa convivência pacífica e amorosa, típico
verniz para a situação explosiva cada vez mais intensa no mundo.
Nei Duclós
O mega-sucesso francês “Intocáveis” (de Olivier Nakache e Eric Toledano, 2001) tem
várias sintonias com outro preferido do público: o americano Pretty Woman (de Garry
Marshall, 1990). É a sempre
bem aceita síndrome de Cinderela, quando alguém muito pobre tem acesso a um
palácio, a um personagem rico e pinta um clima que acaba emocionando a platéia
e acaba sempre bem. A prostituta (Julia
Roberts) contratada como scort pelo multimilionário depredador de empresas (Richard
Gere) é, na versão francesa, o afrodescendente (Omar Sy) que é escolhido como
acompanhante do ricaço (François Cluzet)
com todo o perfil do nobre europeu, já que não sabemos qual a origem da sua
fortuna.
Em ambos os filmes, o personagem carente acaba
experimentando um banho de loja e de cultura. Até a cena da ópera é idêntica. A
solenidade do evento artístico é quebrada pelo furão ignorante divertido, para
espanto da seleta convivência. Há ainda o contraponto óbvio entre o vazio de
quem tem dinheiro e a alegria de viver de quem não tem. Sim, tolinhos
espectadores, dinheiro não traz felicidade a não ser que entre no circuito
alguém que jamais teria acesso a tanta riqueza e faz tudo ficar com algum
sentido. A grana, enfim, vale para alguma coisa, desde que o emergente traga de
suas origens aquele visgo que só a escravatura é capaz de dar com seu rebolado
e seu sapateado. E que ganha o olhar complacente dos funcionários bem postos do
privilégio, como o gerente de Hotel de Pretty Woman ou as secretárias de
Intocáveis, todos no papel da fada madrinha que incentiva a presença do ungido
no baile.
Trata-se de uma sucessão de truques manjados que levam o
público a se emocionar com o que parece ser a diferença, a diversidade, a
correção social e política, o acesso às jóias culturais etc. Mas são apenas
truques que se desmascaram ao longo da narrativa. Há um claro deboche à arte de
vanguarda, quando fortunas são pagas a borrões vermelhos sobre telas brancas e
o maconheiro afro acaba ganhando 11 mil euros por algo que ele resolveu jogar
na tela sem nenhum critério. As imagens de Magritte e Dali, assim como o som de
As Quatro Estações, de Vivaldi, são como posts recorrentes do Facebook, exemplos
do que parece ser erudição e é apenas obviedades da percepção. Não é preciso muita
formação para saber de Goya ou Freud, mas o pacote é servido como a essência de
vidas que buscam um sentido no meio de seus dramas.
Quanto ao fato de ser “baseado em uma história real” lembra
os irmãos Cohen que colocaram isso no início de um filme deles e depois
disseram que era ficção. No caso de Intocáveis, o tetraplégico bilionário
branco e seu parceiro do Terceiro Mundo aparecem no final como seres reais,
como se as suas biografias tivessem sido retratadas no história. É mais uma sintonia
com as redes sociais: o avatar, a personagem virtual, é colada ao real, mas
ganha vida própria e muitas vezes e pode perder totalmente a sintonia com ele.
Há também no filme a identificação com a moda atual do
relacionamento homoafetivo e não se trata apenas do casal gay da secretária do
ricaço, mas dos próprios personagens principais, em que visualmente e no
relacionamento amoroso que nasce entre eles, o passivo milionário depende das
iniciativas do ativo pobretão. Claro que tudo recebe um verniz de comédia romântica,
quando enfim é servida a presença real de um romance hetero epistolar. Mas isso
só acontece num momento, enquanto o relacionamento homo pontifica o tempo todo.
Nada demais, a não ser o fato de que isso não é assumido claramente pelo filme,
como se estivesse apenas abordando uma amizade entre dois rapazes, quando está
na cara que os dois formam um casal.
Não poderia deixar de existir nessa obra fake o recurso
irritante do clipezinho, em que as atividades divertidas dos dois que acabam se
encontrando chegam ao esplendor de voos em espiral de parapente, num clímax de
gerar urticárias pela obviedade e apelação. Mas quem vai evitar esse tipo de
filme, de usarem esses expedientes, se a cada vez que repetem conseguem acertar
na veia da arrecadação? Dinheiro, é só do que se trata. É um filme medíocre,
meloso, que usa todos os elementos de hoje (inclusive citações sobre a atual campanha
presidencial americana) e encanta as plateias porque usa o mito ancestral, o da
Cinderela, repete jargões de outros sucessos do cinema, tem a aparência
politicamente correta (a impiedade humanitária do tratador para com a vítima
que ele cuida), se sintoniza com comportamentos emergentes que ganham grande
destaque e contrapõe migrantes e conservadores numa convivência pacífica e
amorosa, típico verniz para a situação explosiva cada vez mais intensa no mundo.
Fazer sucesso não é crime, a não ser quando a manipulação extrapola
e a obra procura aparentar ser o que não é. A alienação imposta deve ser
desmascarada para podermos estragar a festa.