24 de abril de 2012

SHOCK CORRIDOR, DE FULLER: A DOENÇA POLÍTICA DA LOUCURA


 Nei Duclós

Em 1945 o cinema ainda se dava bem com a psiquiatria. Gregory Peck podia se curar de seu distúrbio, a amnésia, e com a ajuda da doutora Ingrid Bergman, lindíssima e fria, resolver um caso de assassinato em Spellbound, de Alfred Hitchcock. Mas nos anos 60, quando a crítica à psiquiatria atingia níveis de denúncia que iam do teatro à academia, de Peter Weiss a Foucault, o cinema também brigou com a ciência criada por Freud. É o que atesta Psicose, de 1960, do mesmo Hitchcock, onde o psicótico não tem cura e é de verdade o assassino de dupla personalidade; e Marat-Sade, filme de 1967 de Peter Brook baseado em peça de Weiss, em que o Marques de Sade encena uma peça dentro do hospício sobre o assassinato do revolucionário Marat.

A loucura deixou de ser um desvio individual e passou a representar uma doença política. Quem tinha direito à recuperação eram as pessoas confiáveis, como o personagem de Peck. E não outsiders como um hoteleiro perdido no ermo traumatizado com a perda da mãe, como em Psyco. O divã funciona para as pessoas de bem, enquanto o resto amarga nos depósitos mentais dos hospícios. O ponto de inflexão dessa virada que destronou a psiquiatria como panacéia foi a celebrado livro de Ken Kesey , Um Voo Rasante sobre o Ninho dos Cucos - One Flew Over the Cuckoo's Nest, de 1959.

Cuco é uma ave que expulsa as outras para colocar seus ovos e criar os filhotes. Voar sobre o ninho deles é ultrapassar os limites. Ken Kesey se baseou na sua experiência de enfermeiro em num hospital psiquiátrico e Michael Douglas levou uma década e meia para conseguir produzir o filme Um Estranho no Ninho, de 1975, dirigido por Milos Forman. Mas antes dele o intempestivo e genial Samuel Fuller se adiantou e fez uma versão da história à sua maneira. Trata-se do brutal, radical, insuperável Shock Corridor, o Corredor do Eletrochoque, numa tradução livre, o filme mais importante do celebrado cineasta cult e que bota para correr todo esquema de punição e manipulação das mentes que a indústria da psiquiatria, alimentada pelos poderes, impõe sobre a população.

Em nenhum lugar vi que Fuller se baseou em Kesey, mas está na cara. Corridor é de 1963 e o livro é de 1959, lançado em 1962. O romance conta a história de um criminoso que, para se livrar da prisão, decide se internar num hospício fingindo-se de louco para passar bem. Dança, pois acaba lobotomizado. O filme de Fuller é idêntico, só que com os elementos do próprio Fuller, que entrou para trabalhar em jornal aos 12 anos e logo depois já era repórter policial. Ele coloca o personagem como um repórter (interpretado por Peter Breck),que quer desvendar um crime no hospício e pede para a amante se passar por sua irmã para denunciá-lo como incestuoso. Assim ele garante um lugar no meio das testemunhas do assassinato.

Fuller faz os atores trabalhar, não deixa ninguém sossegado. As cenas de surtos e de brigas são de arrebentar.  Os cases são profundamente radicais. No livro de Kesey existem as prostitutas, o índio americano, o baixinho, o gigante, uma fauna variada de outsiders. No filme de Fuller há o negro racista (com discursos impressionantes contra a própria raça) o ex-cientista nuclear que pira e regride até a idade dos seis anos, o gigantesco obeso italiano que canta óperas, o filho de fazendeiros sulistas que tinha virado comunista por abandono ideológico dos pais e do governo e que se arrepende e tenta voltar, mas acaba também no eletrochoque. E tem as ninfomaníacas, aqui tratadas como doentes graves e agressivas.

O filme é uma espiral que envolve o protagonista até sua loucura total. Manipulado pelo diretor do hospital de sobrenome Cristo, ele se deixa arrastar pelo ambiente e, mesmo conseguindo decifrar o mistério do assassinato, não consegue mais sair da armadilha que montou para si mesmo por pura ambição,pois queria fazer uma reportagem que ganhasse o cobiçado prêmio Pullitzer. A única personagem lúcida é a namorada do repórter, interpretado por Constance Towers, que deu show em Naked Kiss. Em Corridor ela faz uma stripper veterana que tenta demover o amante da sua piração, mas não consegue.

A loucura, em Fuller, é uma doença política. O negro fascinado pela Ku Klux Klan representando a identificação da vítima com seus algozes, o ex-cientista regredido á infância representando a irresponsabilidade da ciência, o herdeiro sulista que vive fazendo jogos da Guerra da Secessão mostrando que o anti-patriotismo é a nação que se deixa invadir e pode não sobreviver. Todos surtam no corredor do eletrochoque, atirados ali e convencidos que são culpados da própria demência .

Em Shock Corridor, Samuel Fuller ocupa lugar de destaque na vanguarda cinematográfica, origem de seu exílio posterior, quando teve de emigrar para a Europa depois de mais algumas incursões do seu cinema demolidor. Foi arrastado para a televisão, onde fez coisas inomináveis de tão ruim e acabou saindo dos EUA para que os chacais dominassem a Sétima Arte. Jogaram fora o buldogue tenebroso fumador de charuto, que dizia  mais ou menos o seguinte: “Não importa a manchete, mas o quão alto você pode anunciá-la”. Fuller berrou. Seu grito se ouve ainda hoje.


RETORNO -  Imagem desta edição: Peter Breck no corredor do eletrochoque.