Nei Duclós
Continuo a viagem na força da natureza, o cineasta Samuel
Fuller (1912-1997), a enésima potência da energia na Sétima Arte, o autor de
inúmeras obras-primas que encantam gerações e que rompeu todos os vícios de
linguagem do cinema, criando soluções imitadíssimas até hoje. Sabe o chefe dos
bandidos que fica o tempo todo na piscina? O momento dramático em que o
anti-herói enfim leva um tiro e se arrasta pela avenidas desertas até morrer
num beco? Os jargões como “let´s get out of here” dito para amantes ou comparsas?
A tela sendo ocupada inteira pelo olhar oblíquo de alguém que se esgueira? Os
letreiros de impacto se superpondo às imagens para costurar a narrativa? São
inúmeros os recursos usados por Fuller que se tornaram cânone.
O melhor de Fuller é pré-macartismo, antes que a direita metida
a politicamente correta destruísse Hollywood para transformá-la nessa choldra
inominável de releases visuais sobre aos mariners, os advogados, o FBI, a CIA,
os mercenários fedorentos desprezíveis e os escatológicos porcos de gerações de
falsos comediantes. Antes de ver seu assombroso Underworld USA (que é de 1961, mas é um autêntico exemplar do cinema formado antes do massacre direitista dos anos 50) eu
achava que Nick Ray tinha mandado bem com Rebel Whithout a Cause, de 1955. Mas
só as sequências iniciais sobre delinquência juvenil coloca a juventude transviada
de Ray no chinelo. Fuller não tem piedade, não perde tempo com sentimentalismo.
Tudo nele é um exagero de talento e competência.
Mas o forte do filme é a aula que dá sobre como funciona a
corrupção. É puro Cachoeira. O bandidão que fica na piscina dia e noite (como o
Peréio de Lúcio Flavio, de Babenco, 1977) domina os negócios do Estado, paga
impostos, faz caridade e explora a juventude como grande mercado para as
drogas. manda matar desafetos e informantes. Seu capanga elimina uma criança, a
menina que andava de bicicleta numa rua tranquila. Ela era filha de um garganta
profunda que entregava tudo sobre propinas aos policiais e por isso foi
eliminada para servir de lição, já que o alcaguete estava foragido. A intercepção de documentos sigilosos é puro
wikileaks, se formos usar um anacronismo.
Fuller não é sentimentalóide, mas mata a pau nas cenas de
amor. “Tem mulher que chora, se desespera, morde, ameaça, mas eu não. Eu morro
por dentro cada vez que você me beija”, diz a mulher (interpretada por Dolores
Dorn) que também tem informações secretas sobre a máfia e está fugida e sob a
guarda do arrombador de cofres (o carismático Clif Robertson). “Sabe por que ela é grande?” diz a protetora
do ladrãozinho (Beatrice Kay). “Porque viu algo dentro de você que vale a pena
salvar".
A feminilidade corajosa que expõe explicitamente sua
diferença e se encanta com a virilidade ética, mesmo em casos considerados
perdidos, é o casal canônico de Fuller, presente também em Pickup on South
Street (1953), já analisado aqui. As cenas de beijo são arrasadoras. Os homens
avançam, as mulheres sem entregam, a tela se incendeia. O homem está sempre ligado
à sombra: numa cena inspirada nos comics, vê-se apenas a sombra dos assassinos
em cima do pai do protagonista, gerando nele a vontade eterna de se vingar. Ele
se arrasta por becos, salas escuras, ruas mal iluminadas. A mulher é a luz, a
claridade, que aparece no seu caminho numa fresta. Seu rosto é um flash na
escuridão. Ela chega para desviá-lo em direção à relação permanente, a solução,
a saída para uma vida tão estéril.
Quem resiste a Samuel Fuller, que arrebenta com os
paradigmas dos gêneros, os ultrapassa e se transforma em referência absoluta do
noir, como neste Underworld USA, do faroeste como Eu matei Jesse James etc.?
Ninguém. Sobram livros variados sobre ele por todo o canto. Amado, celebrado, analisado,
Samuel Fuller é um criador que funciona como uma bomba atômica no cenário gelado
da indústria do espetáculo.
RETORNO - Imagens desta edição: o assassinato representado por sombras em movimento e a aparição da heroína em Underworld USA.