3 de abril de 2012

MY JOY: SURTO NA RÚSSIA PROFUNDA


Nei Duclós

Minha Felicidade (My Joy, 2010, ou Schastye moe, no original), de Sergei Loznitsa, com Viktor Nemets no papel do caminhoneiro que leva uma pancada na cabeça e surta na Rússia profunda, foi um dos destaques de Cannes em 2010. O filme, que tem muito da experiência do diretor com documentários, é aterrador. Um exemplo de como o tecido social se esgarça e nos fios rotos e puídos das relações sociais destruídas medra a brutalidade policial, a ação das máfias em todas as atividades, a destruição das famílias, a pedofilia, a prostituição, a miséria, o vazio, a vingança, o obscurantismo. A solidariedade e a boa vontade dançam na mão dos facínoras.

A fonte do horror é o stalinismo, a burocratização do sistema social plantada sobre os despojos de sucessivas guerras, e seu desdobramento, a Rússia pós queda do Muro dominada pelos bandidos em toda pirâmide social. O soldado que traz o belo vestido para a noiva que enfim vai reencontrar, uma máquina fotográfica Leica e um casaco de inverno, atira no algoz que rouba seus pertences e por isso perambula até a velhice sem identidade. O filme é uma viagem da ex-URSS heróica (quando o caminhoneiro começa sua viagem ao som de um hino patriótico) em direção às ruínas, ao espólio do stalinismo, ao sumiço dos corpos assassinados numa terra sem lei onde todos querem tirar proveito e as crianças, velhos e mulheres dançam na mão da marmanjada bruta com ou sem farda.

Há muito de documentário: as figuras populares detonadas que se reúnem na praça em torno da própria pobreza não fazem parte da interpretação, estão lá com toda a sua verdade. A jovem prostituta que não aceita esmolas e diz que se sustenta com seu ofício é olhado com estupor pelas mulheres veteranas da aldeia, que observam a conduta da minoridade corrompida, mas querendo ser independente. O filme reporta o orgulho nacional sufocado pela barbárie: os soldados desertores matam o professor adepto dos alemães, que os considera cultos e, portanto, irão beneficiar o ensino.

Mas o diretor peca pela falta de continuidade. O que é admirável nos americanos é que eles não repassam enigmas para o espectador. Exageram no tom didático, mas também não permitem que você confunda personagens. O caminhoneiro que leva uma pancada na cabeça e fica mudo e catatônico se parece com o companheiro de assaltos de uma dupla de mendigos. Ambos se confundem numa narrativa que não mostra a passagem do jovem motorista cheio de fé para o desesperado homem barbudo (portanto, irreconhecível) que perambula pela neve e acaba cometendo crimes.

Fica assim parecendo uma colagem de muitas situações sem ligação entre si. Só depois que acaba o filme nos damos conta que os saquinhos brancos de plástico vendidos na feira contém a farinha roubada da carga do caminhoneiro vítima. Como é um produto que veio de fonte adventícia, é alvo da máfia que espanca o novo vendedor. Mas isso não fica claro na hora de vermos a obra. Quando a mulher conta o dinheiro de uma venda, o que ela está vendendo? A carga, desconfiamos. Mas o filme não mostra. Precisa dizer com todos os frames senão confunde tudo. O cinema americano marca visualmente um personagem que assim não fica perdido na narrativa. Uma boa lição que deveria ser aplicada.

Se você faz um cinema de transgressão, não pode ignorar simplesmente o cânone, é preciso superá-lo, ou criar novas alternativas e não simplesmente incorrer em erros que o cinema clássico já resolveu. Arte é soma e só é exclusão pela superação, não por ignorar o que foi feito. Elogiei aqui o filme turco Era Uma Vez em Anatólia, http://outubro.blogspot.com.br/2012/03/anatolia-exumacao-e-autopsia-de-clark.html em que os faróis selecionam closes no escuro da noite.Revi ontem o final de Blue Angel de Fritz Lang: essa solução cinematográfica está lá nos anos 30. Quando temos dúvida da fonte de algo importante, devemos apostar no certo: algum gênio já criou.


RETORNO - Imagem desta edição: cena de My Joy.

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