17 de abril de 2012

SAMUEL FULLER E A NUDEZ DO MITO


Nei Duclós

Os três primeiros filmes escritos e dirigidos por Samuel Fuller – sendo que só um não foi também produzido por ele – entre 1949 e 1951 despem os mitos que o próprio cinema vestiu. O primeiro, sua grande estréia, arrasadora, Eu Matei Jesse James, é o contraponto entre a formação do mito (o Robin Hood heróico invencível traído pelo melhor amigo, contado pelos folhetins e imprensa e cantado pelos trovadores ambulantes) e seu antídoto (a representação do crime no teatro protagonizado pelo próprio assassino, Bob Ford, o cara que assim fica marcado para morrer, pois matá-lo daria fama ao atirador). Em tese é um faroeste, mas Fuller rompe os mitos que cercam os gêneros.

O segundo, O Barão do Arizona, que também não pode ser enquadrado como um faroeste, apesar de todos os elementos presentes na tela, é a exposição de uma fraude e sua queda. É a a oposição entre a formação de um mito – a falsa nobreza que reivindica o território de um estado inteiro por meio da falsificação de documentos seculares e a invenção de uma linhagem fictícia – e a pressão sofrida até sua derrota tanto por parte do Estado americano quanto da população lesada pela ambição do fraudador. Como um romancista que conta a saga de um falso pioneiro e se encanta por sua performance, Fuller é um autor de transgressões múltiplas que procura revelar o cruzamento entre o que é considerado verdadeiro e sua contrafação, tomando partido não por um ou outro lado, mas pelo cinema.

Em Jesse James, a peça de teatro reproduz fielmente a cena do próprio filme, gerando um efeito desdramático nos espectadores. Em Arizona, a paciente e elaborada criação da fraude mostra como a percepção alheia e as leis podem ficar à mercê das representações, dos tratados, dos documentos, das ambições. Nos dois filmes, os telegramas e os jornais servem para, em off, costurar a narrativa dramática que gira em torno de poucos personagens. Em ambos, o amor sincero entre duas pessoas é o que sobra de verdade de uma espiral de mentiras. Tudo sem nenhum sentimentalismo, pois as paixões nascem não da moral mas da pele, das emoções, das atrações misteriosas, das vivências.

No terceiro filme, O Capacete de Aço (The Steel Hemet), alguns mitos são despidos pelo cineasta, como o perfil da América – representada aqui pela diversidade étnica, bem ao contrário da cultura caucasiana de Hollywwood – a guerra no que ela tem de mais importante ( seus bastidores, suas humanidades, os detalhes, a indiferença, o instinto de sobrevivência, a garra). Não é um filme sobre heroísmo standard, mas sobre um heroísmo possível, mais bruto, sem mistificações, sem nenhuma roupagem de gala, sujo e feio e ferido. Um assombro de filme.

Existem muitos cineastas, bons, importantes, gênios. Mas Samuel Fuller é de outra natureza. O cara é foda. Acho que isso o define. Ele é uma força da natureza que explode na tela em cenas e falas inesquecíveis (como “se você morrer eu te mato” dito pelo sargento para um prisioneiro que precisava sobreviver para ser interrogado). As brigas, os beijos, os tiros, tudo excede em Samuel Fuller. Acho que The Steel Hemet é o melhor filme de guerra que vi e olha que sou veteraníssimo no gênero. O sargento manco fumador de charuto e atrapalhado, que delira no meio do tiroteio é uma figura inesquecível. O soldado que carrega o órgão herdado de um padre moribundo, o médico negro que precisa pegar na metralhadora, o soldado mudo que cuida das mulas e morre assassinado pelas costas: tudo é intenso nesta obra.

O desconhecido que chega no casebre para transformar uma órfã mestiça numa baronesa espanhola, embaixo da chuva e que no final do filme é recebido por ela, adulta e sua esposa, também sob aguaceiro, é também mais um exemplo dessas costuras magníficas da Sétima Arte, que Fuller domina como ninguém.


RETORNO - Imagens desta edição: cenas dos três filmes citados.

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