15 de abril de 2012

LUZES DA CIDADE: VER, EM CHARLES CHAPLIN


Nei Duclós

Você consegue ver agora? pergunta o vagabundo para a florista. Sim, agora eu consigo, diz ela, decepcionada com o que vê. Esse insight provocado pela ruptura da cegueira, fonte de ilusões de quem, no escuro, imagina um romance com um sujeito rico e que no fim era um mendigo fingidor, é um dos momentos mais importantes da Sétima Arte. Por ser uma absurda obra-prima absoluta, criada arduamente pelo gênio de Charles Chaplin, que inventou soluções cinematográficas deixando a equipe esperar por semanas a fio enquanto meditava sobre a melhor saída, Luzes da Cidade (1931) pode ser lida de várias formas em muitas camadas. Prefiro ver tudo como metáforas. É o caminho mais óbvio, e, portanto, irresistível. Isso não significa que vamos nos entregar a obviedades.

A história é conhecida: ela esperava que seu benfeitor, que pagou pela operação dos olhos, fosse alguém como o freguês rico que chegou num carro de luxo para fazer uma encomenda. Mas o que ela tem na sua frente é um mendigo, arrasado pela prisão provocada por um equívoco, um assalto cometido por dois ladrões, atribuído ao pobretão. O dinheiro conseguido foi doado por um milionário bêbado que sofria de amnésia alcoólica – a culpa da má distribuição de renda dando um intervalo no egoísmo e que volta ao normal na sobriedade. Mas a polícia achou que tinha sido roubo e prendeu o mendigo.

A florista (interpretada por Virginia Cherrill) que enfim enxerga, livre da ilusão provocada pela cegueira, onde construiu suas fantasias, é como o espectador que na sala escura enxerga o que a indústria do espetáculo lhe mostra. O espectador se projeta na tela e é protagonista do seu sonho. A florista se vê casada com um homem rico, mas não sabia que recuperar a visão tinha um contraponto, o de enfim ver o que a realidade lhe aprontava. Ela tinha sido alvo do amor e da solidariedade de alguém sem posses mas cheio de sentimento. Deixou-se seduzir porque imaginava estar assediada pela riqueza. Mas a verdade era outra.

As soluções cinematográficas são poucas e foram criadas em sua maioria no cinema mudo. Vemos a repetição delas a toda hora. A súbita revelação provocada pelo toque nas mãos é um lugar comum no cinema depois que Chaplin inventou essa cena. A confusão provocada pela porta de automóvel que se fecha, batida pelo mendigo, e que acaba iludindo a florista pelo som é talvez uma alfinetada de Chaplin no cinema sonoro: cinema é imagem e o som poderá apenas confundir. O que vale não é o barulho dos carros, as falas dos personagens, os ruídos da riqueza, e sim as formas de luz e sombra que aparecem na tela. Cinema é apenas o que vemos, não o que imaginamos ou ouvimos.

Em poucos minutos, neste filme, Chaplin faz talvez uma das cenas mais contundentes do cinema noir. É quando ele foge dos assaltantes apagando a luz da mansão do milionário onde foi recebido. Apenas alguns feixes de luz pipocam no ritmo da sequência, com sombras ameaçadoras perseguindo o protagonista, e um revólver tentando caçá-lo no escuro. A sombra como refúgio e a luz como ameaça: na alternância ou convivência desses dois elementos do claro-escuro, Chaplin constrói uma situação de perseguição, medo e suspense, pois a salvação da florista cega dependia do dinheiro que ele trazia no bolso naquele momento.

Há que se destacar também, entre inúmeras sacadas, a antológica cena da luta de boxe, um show coreográfico onde o malabarista Chaplin nos encanta com sua performance perfeita. Não é apenas hilária, não é apenas irresistível, não é apenas a melhor cena de boxe do cinema: é obra de gênio, e nunca é demais repetir isso. Que jamais tenha ganhado um Oscar diz tudo sobre a indústria do cinema, que apostou no Mesmo e puniu a originalidade.

Ver, em Charles Chaplin, nos liberta da ilusão de uma sociedade dividida em classes sociais e nos devolve a humanidade perdida na cultura do dinheiro. O mendigo que é também trabalhador ocasional, autônomo, recolhendo excrementos de animais na rua, é o único capaz da solidariedade numa selva de falsos sentimentos, onde as flores são compradas, assim como os relacionamentos. A florista vive dessa ilusão de amores que se conquistam por mimos caros, mas acaba recebendo uma lição memorável: a de que a clareza do olhar sobre o coração alheio vale mais do que todas as mentiras sedutoras do mundo.

As luzes da cidade confundem o olhar. A luz do olhar sem a sombra do egoísmo enxerga o essencial.

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