26 de maio de 2009

POVO


Nei Duclós

A casa onde fui criado é ampla, de esquina, e naqueles idos situava-se nos últimos metros da rua asfaltada. Depois dela vinha o pedregulho, que desembocava na beira do rio. Nessa região fora do circuito morava o “povo”. Algumas janelas eram voltadas para a parte nobre do calçamento e outras para o lado obscuro do país, de onde emanavam os melhores parceiros das palhaçadas da infância, desde rodar um trouxa encurvado num pneu velho até o assassinato regular de passarinhos.

Morávamos em frente ao colégio que nos “desasnava” (para usar um verbo caro a Monteiro Lobato). Os professores maristas vinham de regiões de migrantes e falavam com sotaque carregado de italiano e alemão. Brasileirinhos, entrávamos em aula só depois de fazer fila no pátio e não começávamos os estudos sem antes rezar para Deus e a Santa Maria. Éramos avaliados todas as semanas por meio de pontos acumulados na nossa aplicação. Nas redações, aprendíamos religião e português e desenvolvíamos uma persona estilizada, que traçava nosso destino, quando deixaríamos para sempre as origens e o berço para assumir o processo civilizatório.

Mas bastava bater o sinal para que arrebentássemos em bando, improvisando bola de papel e meia de um futebol precário e violento. Era preciso, como fazia meu pai, proibir as brincadeiras durante a semana e só permitir a muvuca aos domingos (sábado era dia útil) e nas férias. Isso intensificava as artes e ofícios das brutalidades infantis na escassa margem de tempo em que fazíamos parte do povo brasileiro, improvisando nas brincadeiras a sabedoria que mais tarde garantiria a sobrevivência no país em ruínas. É como dizem hoje nos documentários da natureza sobre leõezinhos na savana: tudo era um exercício para a guerra futura.

Nossa vantagem é que tínhamos sido treinados nas noções poderosas de cultura e conhecimento. Éramos o povo de uma soma que foi abandonada e hoje exibe as feridas da nação deslocada do seu foco. Ninguém mais é brasileiro, essa delícia de ser único num planeta de misérias. Somos todos gaúchos, catarinenses, italianos, russos, açorianos, baianos ou mineiros. O Brasil ficou para trás ou longe de nós, como um moleque que sabia a tabuada e aos nove anos já fazia poemas sobre a criação do mundo.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 26 de maio de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: o destacamento do meu pai, Seu Ortiz (que está à direita da foto, de bigode, recostado, ao lado da menina), em 1932. Houve guerra no Brasil e o povo brasileiro sempre esteve nela. Foto cedida por meu irmão, Elo Ortiz.

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