25 de maio de 2009

NÃO EXISTE “INVEJA NO BOM SENTIDO”


Nei Duclós

Admirar é reconhecer no Outro algo que transcende, que está acima do nível comum. Implica desejo de vida longa, para que a pessoa admirada continue produzindo o que causa espanto e emoção nos seus semelhantes. Ou, quando é o caso de alguém que já partiu, que mantenha intacto o perfil de sua trajetória ou a grandeza de suas obras.Implica também renúncia, pois quem admira reconhece no Outro as qualidades que não possui, ou compartilha, ou seja, divide.

Inveja é exatamente o contrário. É o desejo de roubar a obra alheia, e, em conseqüência, eliminar de todas as formas não apenas a autoria, mas o autor. É manifestação do Mal e só existe nesse sentido. O invejoso é incapaz de admirar, então quer ter o que pertence a outra pessoa. Flagrado, muitas vezes por ele mesmo nessa posição mesquinha, defende-se dizendo que sua inveja é “boa”, ou no “bom sentido”. Ludibriar o que sente de verdade, driblar a percepção alheia sobre seu crime, é a esperteza dos falsos inocentes.

“Certo”, diz essa versão, “fui pego invejando, mas veja bem, estou no fundo admirando”. Então por que não diz que admira? Porque admirar, nesta selva de egos repulsivos, é estar em desvantagem, é admitir que alguém tem a chave e o carisma. Isso pode causar prejuízo! O invejoso não consegue permitir (pois pode perder dinheiro) que Deus distribua sua graça para o próximo, nem entender que essa graça é infinita e faz parte de tudo. Basta prestar atenção ou esperar a sua vez, e não fazer como Caim, que não suportava Abel, o favorito. Admirar é fazer justiça, invejar é transgredi-la.

O mais difícil da admiração é que ela parece ser de uma injustiça sem fim. Por que fulano tem tanto, como se perguntava Salieri sobre Amadeus, por que Deus fez essa escolha? O talento considerado excessivo atrai a inveja mortal dos contemporâneos. A inveja é a véspera do assassinato. Quando o talento é saqueado, a beleza apunhalada, a generosidade traída, todos sabem qual é o instrumento da destruição. É fácil detectar a origem. Normalmente, o criminoso bate no peito, orgulhoso da sua inveja.

No “bom sentido”, claro. Ou seja, ele é ruim até o osso, mas quer posar de bom garoto. Ele fez tudo para que alguém acima da média fosse esquecido, pilhado, achincalhado, mas ninguém notou a autoria do crime. No fundo, vejam, ele "gosta" de quem o desmoraliza! Pois não canso de repetir: a mediocridade fareja o talento e o elimina porque o talento desmascara a idiotia bem pensante, a pose da correção impoluta, o latifúndio da presença sem brilho, a imensidão da vulgaridade bem remunerada.

O rei está nu, diz o gênio, que tem o dom de ver mais do que o normal. É por isso que os grandes espíritos ficam em desvantagem e morrem esquecidos num hospital público, entubados, respirando por aparelhos até se irem aos poucos, enquanto os invejosos preparam suas notinhas mesquinhas, tentando enquadrá-lo em alguma gaveta usando um expediente maroto: o de fazer caber num dedal o mar oceano.

Cabe a nós, os que lamentam a perda, resgatar o verdadeiro sentido de uma vida que tudo deu de si e extrapolou, enchendo de sabedoria seu tempo e seus semelhantes. Cabe também a nós denunciar quem , de maneira sorrateira e na maior cara de pau, diz que o erudito não passava de um reles resenhista e seu romance, ignorado em vida, era bom mesmo.

Invejosos, cuidado. Tudo tem um limite. Estamos atentos.

RETORNO - Imagem desta edição: Amadeus Mozart, o menino prodígio, autor das mais belas músicas do mundo, morreu antes dos 40 anos e foi enterrado numa vala comum.

SOBREPIQUE - DANIEL PIZA E ONOFRE

Nesta nova seção, Sobrepique, vou destacar sempre alguma troca de recados que tenham importância para nossos assuntos. Hoje, coloco aqui o que aconteceu no blog do Daniel Piza, que por motivos misteriosos ocupa vastos latifúndios na mídia e na indústria de livros. A certa altura, como podem verificar no link, ele tascou: "Outro grande jornalista brasileiro que merece ter seus melhores textos reunidos, José Onofre, morreu na terça passada, aos 66 anos. Escrevia como poucos sobre cinema americano, especialmente western. Agora, como no filme de seu diretor preferido, John Ford, imprima-se a lenda. Bons textos não morrem jamais".

No espaço dos comentários, coloquei o seguinte: "José Onofre escrevia sobre literatura, autores clássicos e contemporâneos. Escrevia também sobre cinema, e não apenas western. Tinha vários diretores preferidos, e não apenas um. Deve-se, como escrevi ontem nos comentários do blog do Merten, reunir seus textos em livro. Imprima-se a verdade: a diversidade do talento e da erudição de José Onofre. E não a lenda: a de que sua especialidade era western ou John Ford. O trabalho de José Onofre serve de parâmetro. As pessoas não precisam acreditar, forçadas pela hegemonia das nulidades, que no jornalismo cultural brasileiro só existem mediocridades com pose de produção de pensamento."

A última frase foi censurada por Daniel Piza, que rebateu também no espaço dos comentários: "Nei, publiquei José Onofre por cinco anos. Ele mesmo achava que seus melhores textos eram sobre John Ford, Sam Peckinpah, ´Shane`etc. Mas certamente uma coletânea dele -como defendi no outro post - tem de incluir cinema em geral, literatura e outros temas."

1. Não continuo o debate lá porque fui censurado. 2. Acho arrogância demais um rapaz dizer "publiquei José Onofre". Quando Onofre dirigia o caderno 2, no final dos anos 80 e início dos anos 90, Daniel Piza devia ter uns 12 anos de idade. Quando líamos os textos de Onofre em Porto Alegre, Piza nem sequer tinha nascido. 3. Não se coloca um talento como Onofre no redil do faroeste ou da lenda. 4. Acho que entendi: Onofre era gaúcho! Gaúcho, cavalo, faroeste, entendem? Haja. Focar excessivamente nos textos sobre western, deixando de lado sua grande especialidade, a literatura, é realmente de lascar.

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