2 de maio de 2009

A CIA COMO SOMA DE TRAGÉDIAS PESSOAIS


Nei Duclós

O novo irmãos Cohen, Queime depois de ler, é sobre filme de espionagem filtrado pelo seu deboche, a famosa série de TV, Agente 86. “Fique esperto”, sugere o nome do protagonista da série, Get Smart, mas, diz o filme dos Cohen, agüente as conseqüências. É uma abordagem metida a politicamente correta da agência, feita por meio da comédia ligeira, das tragédias provocadas pela irresponsabilidade das chefias e do vazio da vida americana hoje. É uma dose de intenções que deságuam, em sua maior parte, num trabalho forçado e apelativo, salvo pela alta dosagem de talento de diretores, que sempre nos dão filmes excelentes; roteiristas (armações imbricadas num ritmo que chega ao delírio); e atores ótimos, como John Malkovitch, George Clooney, Brad Pitt, Richard Jenkins, junto com o arraso das atrizes Frances McDormand e Tilda Swinton.

O filme é um conjunto de qualidades que formatam uma besteira comercial. Vamos decidir que é algo proposital, que o foco dos diretores não escorregou na maionese de seus próprios exageros. O mais grave, me parece, é desprezar a CIA, como se ela tivesse perdido completamente suas funções a serviço da presença hegemônica da América no mundo. Sabemos que não é bem assim. Mas há uma tradição de falta de respeito, entre a intelligentsia americana, em relação à agência, como se a porção progressista da América se envergonhasse da sua espionagem oficial como forma de purgar os pecados da nação-império. Não tem como escapar: por mais que esperneiem, são todos coniventes e a CIA está mais atuante do que nunca. Por ser uma instituição gigantesca, que age no mundo inteiro há décadas, tendo feito um monte de barbaridades e sacanagens, é claro que se presta a equívocos. Isso abre a guarda para o achincalhe.

A indiferença e o despreparo dos agentes diante de um evento bizarro – a interferência de um casal comum, de amadores, nos negócios da espionagem – ousam segurar o filme. Os Cohen intensificaram a caricatura para arrancar gargalhadas e lágrimas – já que tudo é apenas show-bizz – e o resultado é confuso. A falta de sentido de vidas não solidárias, casadas com suas carreiras, nas mãos de advogados facínoras , às portas da bancarrota financeira pessoal, sem recursos ou capacidade para realizar seus sonhos (um livro, uma cirurgia plástica, um divórcio) permeiam as ações da CIA, que no filme acaba sendo a representação dessa tragédia coletiva.

A vida social da América estaria num beco sem saída depois da Guerra Fria, como ocorre com a agência. As pessoas se entredevoram (“todos estão transando com todo mundo”, diz um agente) procuram se preservar diante da idade, das traições, dos custos de uma vida artificial. De todas as performances, se sobressai a de Brad Pitt, como o personal trainer sem escrúpulos, burro e superficial. O cara que nos provocava medo com o silêncio de seu personagem Jesse James, atinge níveis de hilariedade perversa como o sujeito que tenta chantagear o agente Malkovitch. Este, no papel de um fracassado alcoólatra e neurastênico, é a implosão americana diante dos impasses nacionais.

George Clooney abre mão de sua imagem de maturidade bem resolvida e séria, presente em todos os filmes onde atua ou dirige. Ele faz um galinhão asqueroso, assumindo a facilidade do comportamento virando-se contra o indivíduo que pretensamente deveria usufruir da liberdade narcisista e brutal. Elizabeth Marvel, no papel de sua esposa, autora de livros infantis, seria o último reduto da fidelidade, sobrevivência de uma realidade conjugal que não existe mais, pelo menos no filme. Tilda Swinton é “a vaca fria” (segundo suas detratoras), que só pensa em seu patrimônio, no amante e na maneira de se manter à tona no mundo sem lei.

Se você me perguntar se gostei do filme, digo que não. Mas não posso simplesmente achar uma droga algo que expõe tanta coisa e possui tantas atrações. Mesmo sem salvar totalmente o filme, elas mostram um trabalho forte, acima do que existe normalmente na programação. Escrever sobre “Queime depois de ler” é resistir a tentação de dizer: “Esqueça depois de ver”.

RETORNO - Imagem desta edição: Brad Pritt, como o personal trainer trágico e hilário.

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