24 de maio de 2009

JOSÉ ONOFRE: UM SONHO E VÁRIAS LEITURAS


Nei Duclós

Recuperei mais cartas de José Onofre, o escritor que melhorou o jornalismo brasileiro por 40 anos e foi embora para sempre na semana que findou. Publico a seguir alguns trechos da nossa correspondência de 2006 , quando, por alguns meses, nos reencontramos por e-mail. Foi a ponte entre dois exílios: o dele, em Jundiaí e o meu, aqui no norte da ilha. Selecionei o sonho que ele teve e as observações sobre livros e autores, que contém trechos de um romance que estava escrevendo.

A situação sonhada, se fosse real, seria minha retribuição ao que Onofre me proporcionou, como o fato de me abrir o Caderno 2, do Estadão, enquanto ele esteve lá. Antes, um registro: meu texto sobre Onofre, publicado aqui na terça feira, dia 19, foi capa neste sábado do Caderno Cultura, do Diário Catarinense. Atenção, ocorrências do Google: os textos abaixo são de autoria de José Onofre.


SE TIVERES UMA PROPOSTA, ME AVISA

"Nei, tive um sonho esta noite que vale te contar: Estava na redação que não consigo descobrir qual era, mas certamente não se tratava da editora Três e seus subúrbios, cercado de pessoas que tampouco consigo identificar. Digamos que estavam ali como extras, aqueles que morrem nos primeiros l5 minutos do filme ou passam a vida encostados naquele balcão comprido. Figurantes, diria. Bom, tu chegas de umas férias, que tirastes para casar e logo junta-se um grupo e tu, debochado, conta onde estivestes (que não lembro) e comentas que estavas lá em cima cercado pelos Hélio Campos Melo, Domingo Alzugarays..., citando outros grandões, com quem não estavas convivendo.

Bom aí tu me dizes (disso eu lembrei bem) que o fulano (dono do principal jornal de Montevidéu, embora a imagem que me ficasse, durante o sonho, era de um jornal pequeno) queria dois caras do Brasil para dirigir a parte editorial. Eu fiquei entusiasmado com a idéia, mas tudo dependeria de um telefonema que darias, à noite, para o cara. Me dissestes que era bom que eu tivesse parado de beber, pois o cara não queria um redação de borrachos. Daí não lembro mais nada. Mas se tiveres um proposta, me avisa. Abraço, zé."

UMA FRASE DE HEMINGWAY

"Estou enfrentando um problema sério. Só tenho o hábito de escrever sob encomenda sobre um objeto, um livro, portanto já tenho o assunto e o tamanho e só falta fazer o bicho cantar. Mas um romance é diferente. Eu te escrevi que já estava nas 30.000 batidas e deixei em cinco mil. É verdade. Falta de hábito, de disciplina e tantas coisas. Mas o fundamental é que existe uma frase do Hemingway que eu vou te citar de memória, sem aspas: o fundamental para um escritor é ter um detector de merda, à prova de choque, que o ajude a saber quando deve recomeçar. Bom, o meu funcionou e eu vi que, na expressão de Norman Mailer ao resenhar um romance de um seu contemporâneo, tinha no computador dois ou três bons contos perdidos no meio de um monte de matéria fecal. E não adianta tentar escrever um livro em uma semana. Assim, recomeço. E vou indo."

NO BRASIL, PREDOMINA O DESALENTO

"Nei, andei por Marte, Júpiter e alguns desertos, meio perdido, até meu livro ficou escondido, num canto de Mojave. As coisas agora estão um pouco melhores. E la nave va. Andei lendo vários livros. Leituras e releituras. Nada que me levasse a lugares mais sombrios dos que estava percorrendo. Eu não gosto dos românticos derrotados, queixosos, como o Soriano (sem querer ferir preferências alheias) ou alguns novos com uma preferência em acampar no Vale das Sombras. Esta coisa funciona assim: eu tenho minhas próprias sombras e não quero a dos outros, mas há um tipo de negror, como o de James Ellroy, de agora, e Cornell Woolrich, de ontem, que eu gosto.

No Brasil predomina o desalento. Na literatura e no dia-a-dia. Ou estarei projetando? É provável. Me lembra uma velha piada que o Ibsen contava, quando via alguém se queixar muito do Brasil (anos 70): Um português se hospeda numa pensão barata e tem mais dois companheiros de quarto. Os dois resolvem fazer uma brincadeira e, quando o português pega no sono, passam merda no bigode dele. No outro dia, o português sai para a rua, estranha o ar, dá uma cheirada e diz mas meu deus! Estão todos cagados”.

O FILHO DO ALPINISTA

"Nei, guarde este nome, Michel Houellebecq. Francês (poderia ser belga), é a única coisa quente (fora o já morto austríaco Thomas Bernhard) que os europeus produziram nos últimos 20 ou 30 anos. Tinha ouvido falar vagamente e nem sabia que a Record tinha lançado Plataforma. Acabei de ler (para resenhar) o romance mais recente dele, A Possibilidade de Uma Ilha. Mas primeiro vou falar do cara (se você já ouviu ou leu, queime isto). Nasceu em 58, em La Reunion, uma ilha francesa. O pai era alpinista e guia turístico e a mãe médica-anestesista. O mandaram, com um ou dois anos, viver e ser criado pelos avós paternos. Com três anos, foi para a avó materna e com esta ficou.

Engenheiro agrônomo, com 20 anos começou a fazer poesia que, como seus dois primeiros romances, não chamou atenção. Seu terceiro romance foi um best seller e ele se transformou no escritor mais discutido da Europa. É acusado de fascista, misógino, racista, etc. e tal. Deixo a teu julgamento. A possibilidade de uma ilha, trata da vida de um comediante do gênero Lenny Bruce. Mas não vou dizer mais nada. O cara tem um texto azeitado e lida com o comum e as barbaridades da mesma forma. Só lendo.

Eu continuo na vida de sempre, que já te relatei várias vezes. O romance está parado na telinha, mas na cabeça está fermentando bem e pode dar 500 mil réis. Veremos."

BURGUESS E NORMAN MAILER

"Nei, assim que deveria ser. O cara escreve o livro e já faz release, convite e a crítica. Me baseio no Anthony Burgess. Antes de ser escritor, ele era professor de inglês na Malásia. Logo percebeu que os livros didáticos eram uma bosta e resolveu ele mesmo escrever o livro. E escreveu (eu tinha) uma pequena históiria da literatura. Cada escritor tinha biografia, obras e depois um comentário crítico. Assinou como John Burgess Wilson, seu verdadeiro nome. Anos depois, já o famoso Anthony Burgess, o Times pediu que ele escrevesse uma resenha sobre o livro de Burgess. E ele escreveu, mas não sei o que disse. Tu devias arranjar um pseudônimo e escrever a resenha do teu livro, afinal, ninguém mais indicado. Abraço, zé."

REFÚGIO DO PRÍNCIPE: SINOPSE DE UM POEMA ÉPICO

"Li e gostei muito. Comecei, claro, pelo pampa,que é o nosso mar original e vi que tudo que eu gostaria de escrever um dia sobre ele já tinha sido escrito e publicado. Foi uma experiência muito especial e que só pode ser compartilhada coma propria leitura. Quando descreves Cacequí, tive a minha madeleine, por um bom tempo. Embora o pampa já tenha tido poetas e ficcionistas como Borges, teu texto me poupa de citá-los.

Depois fui ao príncipe e me encaxei neste mundo como um peixe. Mas acho que o texto é uma sinopse de um poema épico. Sem dúvida um belo texto, mas aprisionado, como uma lagoa que pede um oceano. Foi preguiça? Acho que sim. Bem resolvido, um texto impecável, mas deixa pistas, claras, de que está pedindo pista e eu acho que se já não estás, devia começar a meditar sobre o assunto. Vou ficar aqui, mas volto. Abraço deste correspondente irresponsável. Zé."

RETORNO - 1. Imagem desta edição: Ernst Hemingway. Na nota sobre Onofre na Carta Capital, onde era colaborador, foi dito que "a arte americana das palavras simples e contundentes orientava sua escrita". 2. Criei a comunidade José Onofre, escritor no Orkut. Gostaria que participassem e enviassem textos do Onofre para postarmos lá. É muito trabalho bom que não pode ficar disperso.

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