15 de maio de 2009

A FALA OCULTA: CANÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA



Nei Duclós

Música e letra da canção Conversando no bar (Saudades dos aviões da Panair), de Milton Nascimento e Fernando Brant, tem me perseguido nos últimos dias. Carreguei a magistral interpretação de Elis Regina em 1974 no you tube (acima). De que trata a letra? Da ditadura. Foi feita dez anos depois do golpe de 64, naquele ponto de inflexão do tempo em que a tragédia ainda estava próxima mas já decolava para seu segundo decanato, ou seja, o que viera antes dela tonava-se, irremediavelmente, memória.

Para não deixar escapar esse tempo, o poeta Brant – um dos maiores do Brasil – valeu-se da infância e do símbolo da prepotência de 64, a extinção sumária da Panaiir, que era de propriedade dos empresários Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen — este, dono também da TV Excelsior, que foi igualmente fechada. A Excelsior foi aquela empresa de comunicação líder que ao ser assassinada “cedeu” espaço para o monstro da Globo. É bom lembrar que o autor do despacho foi o ministro da Aeronáutica da ditadura, o Brigadeiro Eduardo Gomes, que jamais perdoou Getúlio por ter perdido as eleições de 1950, que ele contava como certa. O Brigadeiro era o candidato da direita e seu slogan dizia: “Votem no Brigadeiro, ele é bonito, ele é solteiro”.

Mas esta edição não quer se debruçar sobre a história da Panair, que em 2008 ganhou um documentário de Marco Altberg. Aliás, por que não veiculam esse trabalho nas televisões? O verdadeiro escândalo não foi a extinção de uma companhia no auge de sua vida empresarial, mas sim o fato de que ela não foi reativada. Se a ditadura tivesse sido derrotada, teríamos de volta a Panair. Ser ainda parte da memória significa que estamos na mesma fase em que a canção foi feita.

Como diz Brant: “Descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Pan Air”. Nascida em 1929 e incorporada pela Pan American Airways (daí o nome) em 1930, a empresa foi nacionalizada em 1942 (atentos às datas? Ambas tinham como presidente Getúlio Vargas, desculpem a lembrança; é que tudo da Panair é atribuído ao JK, como sempre). Ou seja, o poeta fala da Era Vargas. Vamos à letra:

“Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira”. Os bondes não poluíam, eram uma maravilha urbana. A ditadura cuidou de destruir tudo, embalada pelo precedente aberto pelo JK, que sucateou toda a linha férrea brasileira num acordo de gaveta com os gringos, para ficarmos totalmente dependentes da gasolina e do óleo diesel. Em Los Angeles aconteceu a mesma coisa: destruíram os bondes e a cidade virou uma cloaca poluída. Esse é o resultado dos acordos com as grandes companhias de petróleo.

“E o motorneiro parava a orquestra um minuto./ Para me contar casos da campanha da Itália/”. O motorneiro tinha a manha de parar o bonde (a “orquestra” era o barulho do veículo) para conversar com os passageiros. O que ele conversava? Sobre a campanha da Itália. Qual foi ela? A da FEB – Força Expedicionária Brasileira, criada por Getúlio Vargas para combater o nazi-fascismo na Europa. Havia uma linhagem da memória: o veterano de guerra contava histórias para o menino na viagem de bonde. Isso chama-se civilização brasileira.

“E de um tiro que ele não levou/levei um susto imenso nas asas da Pan Air”. O tiro que ele não levou significa que sobreviveu. É parecido com o grande peixe que escapou: a aventura é contada por meio do drama, do suspense, despertando a curiosidade. O fato relembrado é quase uma anedota. O humor grudado à dor. E o verbo “levar” aqui serve para fazer a ligação da cena do bonde com a do avião. O susto do veterano diante da morte, que repassa ao menino, levanta vôo nas asas da mítica companhia, a que representa o Brasil assassinado. É hora do garoto se assustar. O susto mque ele - e o resto do país - levou.

“Descobri que as coisas mudam e que o mundo é pequeno nas asas da Pan Air”. O sólido mundo do menino no bonde é desafiado pelo batismo de vôo. O mundo, que era grande na visão infantil, e imutável, se transforma e é pequeno visto da janela de bordo. Ou seja, a iniciação, o rito de passagem, se fazia naturalmente, não precisava de uma ruptura horrenda como 1964. O mundo tinha sua memória e seus desafios, as crianças viravam adultos num país pacífico, sem medo, sem terror:

“E lá vai menino xingando padre e pedra/ E lá vai menino lambendo podre delícia/ E lá vai menino senhor de todo fruto/ Sem nenhum pecado, sem pavor, o medo em minha vida nasceu muito depois/”. Esse "muito depois" sabemos o que é: o golpe de 1964, a repressão de 1968, o clima sinistro de 1969 a 1973, o desespero até que o regime fosse obrigado a abrir um pouco (e abriu, soubemos depois, só para se legitimar, como de fato aconteceu em 1985).

“Descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Pan Air”. No lugar das armas, que dão tiro e cospem fogo, a arma da memória. Dos tempos da Panair: dos tempos da Era Vargas.

"Nada existe que não se esqueça, alguém insiste e fala ao coração/ Tudo de triste existe que não se esquece, alguém insiste e fere o coração”. Duas frases quase iguais, tanto que se confundem, mas são diferentes. A primeira fala do esquecimento e da importância de alguém vir cutucar a memória. A segunda fala das cicatrizes, das coisas insepultas, que atormentam e que geram sofrimento toda vez que alguém coloca o assunto na roda. Esquecer para não sofrer ou lembrar e sofrer? Eis o dilemo do narrador da canção.

“Nada de novo existe neste planeta que não se fale aqui na mesa de bar/ E aquela briga e aquela fome de bola/ E aquele tango e aquela dama da noite/ E aquela mancha e a fala oculta/ Que no fundo do quintal morreu, morri a cada dia dos dias que vivi/”. O que se fala na mesa de bar? Fala-se da memória, dos tempos idos, soterrados pela ditadura, da infância (a bola), da adolescência (a dama da noite), da marca deixada pelo golpe de estado no coração das criaturas do país (a mancha), que matou ou escondeu a expressão, a arte a poesia (a fala oculta), matando as pessoas junto com esse assassinato abrupto. Pois 1964 foi isso: a morte repentina de um país.

“Cerveja que tomo hoje é apenas em memória dos tempos da Pan Air/ A primeira Coca-Cola foi, me lembro bem agora, nas asas da Pan Air/ A maior das maravilhas foi/ Voando sobre o mundo nas asas da Pan Air”. A morte repentina origina o mito, o tempo que se foi. Não apenas a infância, mas a alegria de viver num país seguro, um lugar de onde se podíamos ver o mundo de cima. Não estávamos ao rés do chão como agora, quando os brasileiros procuram refúgio no Exterior, em busca de tudo o que foi assassinado, principalmente a paz e a chance de sobrevivência, a oportunidde de ter uma infância, uma vida adulta plena.

“Em volta dessa mesa velhos e moços lembrando o que já foi/ Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual/ Em volta dessas mesas existe a rua vivendo o seu normal/ Em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais/ Em volta da cidade...” Velhos e moços são os deserdados da nação apunhalada de repente, pegos de surpresa pelo sinistro golpe de direita, apelidado de “revolução democrática”. Vemos a democracia que eles plantaram,, olhando em torno. Uma democracia que se lixa para a opinião pública.

RETORNO - A poeta Juliana Meira publicou meu poema Cofre ("Amor não se manifesta/ é cofre em remota estrela") no seu belo blog Tempoema. Juliana está com novo livro na praça, "Poema Dilema", da coleção Palavra Viva, da nova editora Portopoesia, que tem, nesta primeira fornada, lançamentos de mais quatro poetas (entre eles Marco Celso Viola e Mario Pirata). O movimento poético em Porto Alegre está animado.

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