31 de dezembro de 2012

TEMPO E MEMÓRIA: QUEM SÃO ESSES CARAS?



Nei Duclós

Revi a sequência inesquecível da perseguição a Sundance Kid e Butch Cassidy num canal pago de filmes. Quem são esses caras? perguntam os dois bandidos diante da persistência dos seus rastreadores, que dia e noite os seguem até o lugar aparentemente sem saída do desfiladeiro. Vamos pular, diz Paul Newman. Não sei nadar! grita Robert Redford antes de se decidir por cair no abismo. Vimos isso várias vezes na tela grande até que o clássico de George Roy Hill, com roteiro de William Goldman, de 1969, se recolher à televisão e ao download, onde podemos acessar a qualquer momento. O que estava retido na memória em sessões inesquecíveis hoje é prato do dia. Katharine Ross está mais perto de nós do que nunca. Imbatível como a bela de uma época de belas.

Impressionante a resistência física dos atores filmando no meio das pedras e das areias dos desertos nesta e em outras obras igualmente inesquecíveis, como é o caso de Os profissionais, de Richard Brooks, com roteiro dele e de Frank O'Rourke, de 1966, que traz um elenco assombroso: Burt Lancaster, Lee Marvin, Robert Ryan, Woody Strode, Jack Palance e Claudia Cardinale. Sem amor, sem a revolução, nada somos, diz o bandido mexicano encarnado por Palance na outra sequência inesquecível dessa época, o do duelo contra Burt no desfiladeiro. Vendo hoje esses velhões sacudidos, de massa corpórea e presença carismática inigualáveis, nos perguntamos de onde tiravam energia para filmar embaixo da bigorna do sol?

E aquelas mulheres? Nos dois filmes, vislumbramos a gloriosa sensualidade de Ross e Cardinale, em sombra e luz sobre porções dos seios e os rostos iluminados pela extrema beleza. Nenhuma baixaria, nenhuma apelação medíocre, apenas arte audiovisual de intensa carga erótica. O sorriso de Burt olhando para Claudia e se perguntando o que ela fazia para merecer um regate de cem mil dólares é um momento hilário do drama que se desenrola numa época de perguntas sobre a luta armada para a tomada do poder e a mudança do mundo. Mais tarde vimos no que deu: novas tiranias tomaram conta do cenário, mas os filmes permanecem como sagas heroicas de uma memória que mudou de natureza e consistência.

Chega de saudade, dizia o clássico de Tom e Vinicius. Foi o que um artista carioca me disse quando cheguei no Rio em 1969, pedindo para eu focar no significado da frase. Esses dois filmes, entre muitos outros, povoavam minha memória, mas hoje estão disponíveis. O que significa isso? Que houve uma mutação importante no relacionamento que mantemos com o tempo. A simultaneidade das mídias, que enterrou a época em que precisávamos nos locomover para determinado lugar para ter acesso a uma obra cultural, faz com que a memória mude de natureza, exista paralelamente, com alguns pontos de contato com o que temos na mão hoje.

Posso lembrar do tempo em que ia à matinê ver meus filmes favoritos (que eram todos, ô época maravilhosa) mas o que pega é o que posso ver agora. Ligo a emoção de rever a cena com o que estava retido na emoção do já visto. No fundo é outro momento, sem ligação nenhuma com o passado, se for possível ver assim. Claudia e Katharine continuam esplendorosas nesses filmes e os heróis do deserto nos impressionam por suas performances de grandes atores em cena, fazendo estrago nas telas com seus diálogos minimalistas, seus esgares e gestos, seus silêncios e decisões.

Burt decide ficar para estancar a perseguição mexicana e assim dar tempo para o serviço ficar completo, ou seja, devolver a beldade ao seu dono. Pega suas armas e dá uma corrida pelo solaço, em passadas curtas e apressadas. Vimos Burt de costas se afastando em direção ao desfiladeiro. Logo em seguida ele está matando o bando inteiro, aprisionando seu chefe e dando o beijo da morte na guerrilheira que tenta matá-lo enquanto se declara. Esses filmes são os épicos modernos e os grandes cineastas e seus atores, atrizes e personagens são nossos companheiros de viagem.

Tudo era feito no muque, não existiam as facilidades de hoje. Sim, havia os stunts, os truques de câmara etc., mas a cena precisava ser feita na marra, à luz do deserto. Tudo se resume a isso, dinheiro, diz o guerrilheiro. Não só. O que vale é a arte e o talento e o fôlego para chegar a um resultado que permanece.