21 de dezembro de 2012

CAPRA: AS REVELAÇÕES DO REMORSO

Nei Duclós


It´s a Wonderful Life (A Felicidade não se compra), de Frank Capra, eleito o melhor filme de Natal de todos os tempos numa pesquisa do site Rotten Tomatoes , é uma descida aos infernos e lá o entendimento acontece porque a percepção humana muda, ou melhor, amadurece.
Para enxergar Capra, não devemos fugir do que ele representa na sociedade americana. Sua obra-prima funciona como mensagem de adaptação à dura realidade da depressão e da guerra. Foi feita logo depois do fim da guerra, quando os americanos precisam reforçar a auto-estima (agora virou virose mortal, mas na época ela estava impregnada de algo que parecia melhor). Reforça a importância da família, da vida do cidadão comum que não teve maiores chances. Poderia ser um hino ao conformismo, não fosse o crescente ódio que toma conta do coração do personagem principal, interpretado por James Stewart.

A fonte desse ódio são os bons sentimentos e a ética. Ele queria ser recompensado por ter sido correto com o irmão, ao qual cedeu a vez para que se formasse na faculdade, enquanto ele substituía o pai eliminado pelo poder econômico da especulação financeira. Mas foi excluído (o irmão pagou-lhe com ingratidão), teve que ficar, casou e caiu na armadilha, a mesma que tinha acabado com seu pai. Seu ódio então vem à tona (onde ficaram os bons sentimentos?), com tudo. É uma obsessão perversa auto-destrutiva que o leva, numa noite de Natal gelada, diante de um abismo, pronto para o suicídio.

A aparição de um anjo tão perdedor quanto o herói do filme é um dos maiores achado do humor capriano. Os dois precisavam de uma segunda chance. O anjo, que seria recompensado com um par de asas se fosse bem sucedido na sua missão (ascensão social no céu americano, tão comum no cinema deles, que é pura representação da nação imperial-corporativa). O anjo usa a argumentação sedutora e depois a revelação dos resultados do ódio ao qual o outro sucumbiu.

Não há, no cinema americano, seqüência mais sinistra do que a visita que Stewart faz à sua não-vida, às conseqüências da sua vontade de jamais ter nascido. É muito semelhante à história de Dickens, em que o velho avarento é levado por um espírito para visitar momentos importantes da sua vida, em que ele vê o Mal que encarnou em sucessivas manifestações de egoísmo e crueldade (roteiro filmado mil vezes). No caso do filme de Capra, o terror tem a mesma intensidade, que leva o espectador a um sentimento de perda e de remorso.

Antes do arrependimento, que é uma apoteose, a Queda no poço do remorso é uma descida aos infernos digna da melhor literatura. Essa seqüência foi inteiramente chupada no filme De volta para o futuro II, em que o jovem que volta para casa vê sua família e sua cidade destruídas por um ato que ele próprio cometeu no passado. A visão aterradora da cidade entregue à sanha assassina é de um tremendo impacto, mas Capra é o original e seu trabalho é infinitamente melhor. É uma obra-prima que enfoca a vida comunitária e suas resistências contra o Mal. É o fim da ingenuidade e o início do amadurecimento de uma nação que precisava conviver com o ódio na origem de uma paz precária, como a que foi estabelecida no fim da II Guerra. É uma representação política da destruição social provocada pela pirataria financeira, o que lhe dá uma atualidade incômoda.

O final feliz é apenas o regresso ao lar de um ex-condenado, alguém que esteve no front e viu a Morte de frente e que agradece por ainda estar vivo e possuir o pouco que tem. Nada mais humano, e do jeito que Capra fez, absolutamente genial. Não se deve ter vergonha de se emocionar diante de um filme como este. Se pedirem sua opinião, diga que gostou, sem restrições, e que você está ao lado da Criação e contra seus sanguessugas.