4 de dezembro de 2012

VERSOS SONÂMBULOS



Nei Duclós
 

Reli versos que te fiz sonâmbulo. Estavam acordados, sem saber aonde, já que não identificaste a origem.

Na noite alta entreguei à fantasia um pacote com teu rosto embrulhado para presente.

Mostraste teu quarto sem querer. Somei com tua blusa preta cavada e braços tensos para apostar que ali se dará o evento.

Tua cara quase amarrada, surpresa por ser tão sem impacto, atrai não pela pose, xadrez metido a besta, mas pelo fato supremo de ser mulher só tu mesma.

Treinamos o amor sem permitir reparos. Não há mais vagas para quem aponta erros.

Beijo de saudade, grudado, encharcado, lábio de goiabada.

Lua lua lua verte a chama de branda textura, amarelo branca, violento coração de rua.

Convoquei a poesia para te colocar na roda. Foges, mas sempre há um verso que cheira a flor da tua glória.

Depois que te capturo, vou me embora. Há serpentes neste jardim sonoro. O que farás com tuas maçãs remotas?

Pode fingir que dorme. O sol já me contou a novidade. Viu tua perna saindo do lençol junto com a aurora.

Perdi a vontade. Fique com seus poemas, disse ela, que assim me livro do medo de perder-te para o que não te pertence mas te suga os olhos.

Estou sendo sincero, deixei de te querer. Que alívio ser um pobre inseto.

És seletiva. Aceitas tudo o que ele diz. Se alguém mais falar, desconfias.

Não preciso mais de ti, bentevi. Estou livre da tua auditoria, cantoria. Vá para outra freguesia, bigorrilha.

Fiquei por instantes sem o lance que nos liga. Tenha paciência, daqui a pouco volta. O sinal será um súbito beijo em parte surpreendente.

Levantar e baixar a ponte sobre o fosso que cerca teu castelo pessoal é um trabalho de relação profunda com o teu entorno, fonte da criatividade permanente, feita de entregas e resguardos.

É possível que, em pouco tempo, o amor se desmanche, junto com a chuva que te pegou de chofre.

Exagerei no poema. Paciência. Vai piorar.

Pássaros saem das tuas costas fugindo de gaiola de chaves súbitas. Olhas para o voo com teu perfil de nuvem.

Amor, especiaria que exigiu viagem de uma vida inteira para chegar até a tua porta. Mas nem provaste, habitante do deserto.

Lua cheia flutua, encruada no escuro, volume envolvido em superfície, imóvel na imagem, memória de sua fuga de noites sob o jugo de sentimentos antigos


SONHO RADICAL

Só o sonho é radical quando a realidade fecha todas as portas.

Precisamos escrever o espírito da lei para que ela volte aos seus redutos de justiça. Um acordo entre iguais fora da letra morta.

Não faça o balanço quando for embora. Preste atenção apenas no pássaro que, indiferente, cisca perto do teu território. Prepare o voo que ele elabora.

Não diga nada quando fazem o bem sem se darem conta. Não estrague tudo, valorizando o valor que não depende do teu diagnóstico.

Ganhamos a vida para perdê-la. Depois vamos atrás, sem alcançá-la.

Ignoro tuas riquezas, por isso empobreço quando me imagino.

O mormaço cedeu. Foi como se a primavera resolvesse ventar frio depois de se desesperar com seus incêndios.


RETORNO – Imagem desta edição: cena do filme A Fonte das Mulheres.