3 de dezembro de 2012

GRACILIANO RAMOS: O TEXTO PELO AVESSO



Nei Duclós

Publiquei esta reportagem na revista Santista (editada pelos jornalistas Fernando Poyares e Sérgio Leal Maia) em 1992, no centenário do escritor alagoano, quando a editora Record estava relançando toda sua obra. Agora que se celebram os 120 anos do seu nascimento, reproduzo o texto, encontrado nos meus arquivos.

Um centenário para comemorar o rigor ético da palavra

A palavra, como Corisco, não se entrega. Tem a vocação da permanência, apesar de fustigada pela passagem da fanfarra. Por um tempo, pode até colorir o discurso, vender sabonete ou escorrer em panfletos de rua. Mas seu destino final, conduzido sob a ética do talento, é refazer o mundo, por pior que ele seja. Mesmo aquele mundo seco, rude, duro do interior de Alagoas, que criou Graciliano ramos a partir de 1892.

No seu livro “Infância” , ele conta como foi difícil aprender a ler no meio do sertão. O pai sem paciência e a escola, ameaçadora e punitiva, forjaram na dificuldade sua iniciação ao texto. É esta lição, de um mestre de ofício a iluminar, na pedra, suas origens e o futuro, que ele deixa para um país ainda pobnre e perdido.

“Graciliano nos ensinou a provocar emoção discretamente, concisamente, diz a escritora Edla Van Steen. “Ele nos apontou uma nova maneira de escrever, através do acabamento impecável do texto, num estilo sem adjetivos. É o pai dos modernistas brasileiros”. Esse é um dos paradoxos do mestre: de formação clássica, nunca tinha lido Proust e gostava mesmo era de Flaubert, Balzac, Dostoiewski. Seu poeta predileto era Manuel Bandeira, assim mesmo de “Cinza das Horas”. Não gostava da oralidade dos modernistas e chegou a falar mal de Oswald e Mário de Andrade. Segundo o crítico Fábio Lucas, ele dizia que precisava comprar uma gramática paulista para entendê-los.

Logo o “velho Graça” – expressão lembrada, numa crônica, pela sua contemporânea Rachel de Queiroz -, tão cheio de regionalismos: “Graciliano é o mais representativo de uma região que se universaliza”, diz Fábio Lucas. . “A partir de Caetés, seu primeiro romance, publicado em 1933, introduz um vocabulário exclusivo do Nordeste, usando com rigor a tradição da língua”. Fábio nota que em sua obra prima, “Vidas Secas” (1939), ele despoja as personagens com tal riqueza de traços que estes acabam se tornando o prolongamento dos animais e da paisagem.

Outro contemporâneo, o poeta Ledo Ivo – ex-menino prodígio que em 1933, aos dez anos de idade, foi cumprimentado pelo Diretor de Instrução Pública de Maceió, o próprio Graciliano em pessoa – destaca a análise psicológica do mestre, feita num cenário geográfico e político. “É um escritor elíptico e sumário”, diz, “que se baseou na tradição literária. Ao mesmo tempo, ele é singular por não ter a eloquência do perfil brasileiro.  Mas o traço mais marcante da personalidade do escritor é, segundo Ledo Ivo, o da vítima inocente, que sofreu a punição sem culpa.

“Memórias do Cárcere”, seu alentado depoimento sobre um ano de encarceramento em 1936 – quando foi acusado de comunista – e publicado depois de sua morte em 1953, é a obra mais citada por Ledo Ivo: “Além do ressentimento de ter sofrido uma prisão kafkiana, ele tinha uma visão trágica da vida. Era um bicho do mato, um caracol. Vivia recolhido e era avesso à publicidade. Não participava da festa do sucesso dos escritores nordestinos, como José Lins do Rego ou Jorge Amado. Sua glória é póstuma”.

Laços de família tinham aproximado ainda mais Ledo Ivo da casa de Graciliano, que ficava no Rio de Janeiro no início da década de 40. Foi lá que conversara longamente pela primeira vez, quando o escritor mostrou ao jovem poeta um artigo que este tinha publicado aos 14 anos, sobre Vidas Secas.



Esse foi também o início da amizade do poeta com o filho do mestre, Ricardo Ramos. “É curiosa a relação entre pai e filho” (ambos na foto acima), diz a pesquisadora Yedda Dias Lima, do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros, da USP – Universidade de São Paulo. “Ambos morreram no mesmo dia, 23 de março, vítimas da mesma doença, o câncer, e deixaram, cada um, um livro não concluído”. O pai deixou “Memórias do Cárcere” e o filho, que morreu em 1992, quando se preparava para coordenar as festividades do centenário, “Graciliano, um retrato fragmentado”, lançado pela Siciliano.

A polêmica que se seguiu à publicação do livro póstumo de Graciliano  está relacionado diretamente aos 3.500 originais que deixou em poder da mulher, Heloisa e se encontra no IEB desde 1982, sob a responsabilidade de uma equipe coordenada por Yedda. O crítico Wilson Martins cegou a dizer que “Memórias do Cárcere” foi  corrigido pelo Partido Comunista.

Longe desse tipo de briga, o Instituto vai lançar em em outubro, data do aniversário do escritor, que nasceu dia 27, um catálogo de todos os manuscritos,produzido por uma dedicada equipe formada pelas pesquisadoras Eliane Jacqueline Matralia, Cássia Raquel da Silveira, Ariovaldo José Vidal e Maria Lúcia Palma Gama.  Tem quase tudo do autor, como Memórias do Cárcere, Infância,. Vidas Secas, Viventes das Alagoas, Linhas Tortas. E curiosidades como os seus discursos, com destaque para um pronunciamento, contundente, a favor da Constituinte de 1945: “Não nos gastamos em ódios inúteis: as nossas tarefas nos consomem tempo. E a tarefa principal, hoje é esta que aqui nos reúne: exigir uma Assembléia Constituinte livremente eleita".

A fidelidade ao que realmente acontece, o sentido de retidão, a sua recusa à mentira, a sua reflexão profunda sobre a realidade faz Xe Graciliano um prato cheio para estudiosos como o professor de Literatura Comparada da USP, João Luís Tafetá (*), autor de um estudo sobre a roqueza e complexidade da obra do escritor. “Ele é a sua própria experiência, disse Lafetá. “Nele, o fundamental é o modo honesto de contar. O escritor está preso ao real e longe, portanto, da falsidade. “ O trabalho, tese de livre docência, enfoca três ângulos principais, que se comunicam internamente. O primeiro é literário, examina as técnicas das formas de narrativa, onde se sobressai o texto neo-realista que acaba transcendendo os rótulos.

O segundo é psicanalítico, que levanta um oblíquo complexo de Édipo em Caetés  e dois triângulos amorosos: um imaginário em São Bernardo” – onde os ciúmes do anti-herói Honório leva a mulher ao suicídio – e outro real em “Angústia”, onde Luis da Silva, outro anti-herói, acaba matando o rival. Para Lafetá, Graciliano diminui suas personagens e revela os cortes que sofreu ao longo da vida. Ele gosta de citar um trecho de Infância: “Herdei a vocação para as coisas inúteis”.

O terceiro enfoque é do linguagem da ironia, que basicamente é uma inversão e procura dizer o máximo num mínimo de palavras. Lafetá estuda a ética da construção da linguagem de Graciliano, raiz da sua exigência e contenção. “Ele cortava tanto seus textos a cada nova edição, que a esposa advertiu que acabaria apenas com páginas em branco”, lembra Fábio Lucas. Yedda conta detalhes da sua técnica de escrever: Colocava um cigarro ao lado do outro, fora do maço, para não perder tempo. Desenhava uma letra caligráfica, que descia a detalhes da perna da letra a.  Quando cortava, passava uma régua em cima e abaixo da palavra, riscava no meio e até, ás vezes, um cigarro aceso, para não haver dúvidas”.

Descoberto pelo poeta Augfusto Frederico Schmidt, graças aos seus relatórios quando foi prefeito em palmeiras dos Índios, Graciliano Ramos foi traduzido em 32 línguas e seus livros venderam, até 1992, cinco milhões de exemplares, só no Brasil. Alguns deles, como Vidas Secas, Insônia, São Bernardo e Memórias do Cárcere, viraram filmes. Ele destacou-se por virtudes que por um tempo foram esquecidas no Brasil. Hoje elas ressurgem como um exemplo para um país que precisa desesperadamente reencontrar seu rumo.


RETORNO - (* ) O professor Lafetá, nascido em 1946, morreu em 1996. Seu trabalho de livre docência sobre Graciliano Ramos estavaainda inédito na época da reportagem, 1992.