30 de março de 2012

TODO FILME É SOBRE CINEMA


Nei Duclós

Toda vez que a câmara aponta para o alvo obedecendo a um roteiro, uma edição, a uma narrativa, está enfocando a arte em si mesma, no caso, o cinema. Pode ser filme de qualquer gênero, dimensão ou época, sempre haverá esse foco direcionado. Não para um suposto conteúdo, como drama, memória, guerra ou poesia, mas sempre o cinema cumprindo sua função. Pois não se trata de impérios, cidades, heróis ou vilões, mas a maneira como foi criada a solução audiovisual para chegar ao espectador.

Não é apenas o fato de, em Pierrot Le Fou, Paul Belmondo perguntar a Samuel Fuller de que se trata o cinema. Fuller responde que é ação, amor etc.("numa palavra: emoção"), mas a resposta é dada pela câmara de Godard: é de cinema que está se tratando. Ou em Memórias de Helena, de David Neves, a Super 8 aparecer como protagonista do resgate da mulher amada. Ou o detalhe de que, em muitos filmes, é recorrente a referência a alguma obra que define um tempo, quando, ao fundo da ação, os letreiros de uma sala anunciam uma atração. Ou que os filmes favoritos são citados explicitamente ou fazem parte da trama, num efeito dominó infinito que costura as obras através das décadas. Ou o tema da Sétima Arte ser presente de forma decisiva como em Crepúsculo dos Deuses, ou coadjuvante, em Tetro. Não é apenas essa evidência que confirma a ideia.

É principalmente a noção exata que temos de estar vendo um filme quando nos postamos diante da tela. Pois se o filme aborda o Império Romano, sabemos que aquilo não é Roma, é Hollywood ou Cinecittá. Sabemos que são truques, que as pessoas que morrem na tela sobrevivem na vida real, que a iluminação cria o clima e o ambiente, que não existe reconstituição de época e sim a disposição de elementos do cenário em função da narrativa. O que nos leva ao cinema é o próprio cinema, não a Grécia antiga ou a Resistência francesa. Porque é disso que se trata. Quando pela primeira vez o público foi ver um filme, aquele dos irmãos Lumière que mostra um trem edm movimento vindo para cima das câmaras, todos se levantaram em pânico. Foi quando descobriram que a tela mostrava não um trem de verdade, mas a Sétima Arte.

Uma grande parte da produção audiovisual hoje, e que serve para abastecer os inúmeros canais pagos ou da Tv aberta, na indústria do espetáculo, é a filmagem dos bastidores da produção. Um ator ou atriz, produtor ou diretor ou roteirista fala sobre o que está sendo montado e como foi feita tal cena e quais as dificuldades encontradas para que algo desse certo. Ficamos sabendo dos riscos que Tom Cruise correu ao filmar Missão Impossível, o que Scarlett Johansson sentiu quando protagonizou um filme de Woody Allen, o que pensa um cineasta sobre o trabalho do seu colega, como foi formada a equipe, o que a estrela tem a dizer sobre determinado detalhe etc. O cinema é o foco, servindo de apoio para o filme, que trata exatamente da mesma coisa e é seu resultado.

Pode-s elencar inúmeros filmes que jamais citaram a Sétima Arte ou são documentários realistas que marcaram época e que então iriam contrariar o enfoque deste artigo. Pode-se contra argumentar que todos os filmes que não citam a Sétima Arte explicitamente são sobre o filme que está sendo feito, desde o primeiro enquadramento, o primeiro diálogo, até o The End. O filme noir que é sobre a investigação de um crime é o claro escuro e os enquadramentos, a música e as sequências definindo o perfil dos personagens e criando suspense. É a obra em permanente auto-referência.

O que pega em Hitchcock? O suspense? Não, o cinema. Quantos cortes há na célebre cena do assassinato da mulher no banheiro? O que James Stewart vê da sua janela, um crime? Não, uma cena de cinema, onde um possível assassinato dá alguns sinais de que algo sinistro está acontecendo. Stewart é o espectador permanente, está sempre de binóculo em punho, fazendo sua montagem. Representa a nós, espectadores do filme. Ele nos leva pela mão para o centro do drama: veja, isto é o cinema, o cachorrinho tentando desenterrar a cabeça da mulher escondida pelo assassino no jardim.

Poderíamos continuar indefinidamente neste ritmo, mas o que destaco é que esse enfoque costura todo o meu trabalho ensaístico sobre a Sétima Arte. Não é pequeno e gira em torno desse foco. É meu instrumento de trabalho, minha metodologia. Sem procurar forçar a tese, noto que todo filme é sobre cinema. É a marca registrada dos meus textos produzidos depois que aparecem os letreiros.


RETORNO – Imagem desta edição: James Stewart em cena de Janela Indiscreta, de Hitchcock.

Nenhum comentário:

Postar um comentário