25 de março de 2012

ANATÓLIA: EXUMAÇÃO E AUTÓPSIA DE CLARK GABLE


Nei Duclós

A noite é iluminada pelos faróis que buscam um cadáver enterrado em lugar desconhecido. O dia é assombrado pelos motivos das mortes sem sentido. Cinema tradicional é o foco da ação, mas em Era uma vez em Anatólia (2011), do turco Nuri Bilge Ceylan, Grande Prêmio do Juri e indicado para a Palma de Ouro de Cannes, cinema é a periferia desse foco, formada pela espera e por diálogos aparentemente banais. O morto se parece com Clark Gable, diz o promotor, também identificado com o grande ator do passado. No filme, é uma piada. Para sua abordagem, é a solução de uma charada.

O que é mais importante: um necrotério bem equipado ou luz elétrica sem interrupções? Na aldeia onde o grupo de busca descansa por algumas horas, coloca-se o dilema. O ermo está abandonado pela migração e só quando alguém morre é lembrado pelos seus jovens ex-habitantes. No lugar, esplende a beleza da moça da casa, que aparece no apagão portando um candeeiro que ilumina sua face de anjo, quando ela carrega uma bandeja de chá para os visitantes. Que desperdício, dizem, vai murchar neste local miserável. A mulher, coadjuvante numa civilização que “casa” as filhas, ocupa o centro do drama que se desenvolve nas conversas entre homens esvaziados em suas atividades diárias.

O morto foi traído pela esposa, que gerou um filho assumido pelo assassino. O promotor não mandou fazer a autópsia da linda mulher que decidiu se suicidar depois de saber da traição do marido (e ele cai em si quando descobre, por meio do médico, que a morte da suicida, que era sua esposa, foi uma vingança provocada pela traição dele, promotor, que foi flagrado com outra mulher, e não fruto de uma premonição). O chefe da polícia foge da vida doméstica espichando o expediente e precisa se explicar para a esposa que fica em casa com o filho com problemas mentais. O policial quer evitar a adeia dos parentes da mulher, o médico divorciado sente falta da ex-esposa.

O universo feminino fica a maior parte do tempo fora do que as câmaras mostram, mas ocupa o foco principal. Aparentemente, o núcleo do drama é a exumação e autópsia do cadáver parecido com Clark Gable, mas o buraco é mais fundo, é onde se situam as relações amorosas entre a brutalidade masculina e a reação submissa e cruel das mulheres.

O maior papel de Clark Gable foi o de conquistador cínico de E O Vento Levou, personagem que acabou grudando em sua personalidade. Por ser um grande talento, virou Rett Butler pela vida afora. O promotor parecido com Clark Gable perdeu a esposa quando fez uma conquista quando estava bêbado. O morto, também identificado com o ator, não usava roupa de baixo pois estava pronto para o assédio sexual, segundo o legista. Um conquistador barato que se deu mal, pois a mulher se vingou tendo o filho de outro, que acabou matando-o.

Mas há uma leitura mais forte, orientada pelas conversas paralelas e a sucessão de olhares entre os personagens: o cinema tradicional se ocupa de uma ação que diz pouco sobre a vida, é uma ilusão, apenas aparências, enquanto o cinema que se quer verdadeiro foca o subúrbio dessa indústria, o cansaço, o medo, as frustrações de meia dúzia de personagens terminais, que enxergam com dureza a vida traída pela rotina.

Nessa alternância entre a noite da exumação e o dia da autópsia, o diretor trabalha os detalhes como o destaque principal de uma grande arte. O vento nas roupas do varal ou nas gramíneas do descampado; os telhados filmados de cima funcionando como pinturas e apertando o personagem em sua solidão de ruas estreitas; os olhares demorados depois de uma observação ou de uma fala mais intensa; o humor pesado de pessoas que trabalham profissionalmente com a morte; a escassez dos recursos no sistema de segurança e de saúde. Tudo isso compõe um quadro sobre o tempo contemporâneo assombrado pela ancestralidade, tanto da paisagem quanto dos hábitos milenares das relações humanas complicadas.

O diretor usa o país que ama para definir o rosto de sua obra radical. Não filma subterfúgios, não dispõe os elementos do cenário artificialmente, antes os decifra para mergulhar no drama que expõe. Cinema de primeiríssima grandeza, obrigatório sob todos os aspectos. Uma fábula sobre o cinema em busca de um sentido por meio de personagens vazios, humanos e cruéis.


RETORNO - Imagem desta edição: cena de Era Uma Vez em Anatólia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário