6 de março de 2012

MOLHO NA TARDE


Nei Duclós

Melhor assim, atravessar a tarde armados das fantasias mais doces. É uma forma de ficarmos para sempre, abraçados como dois dementes. Você e eu, estranha.

Essa é sua nova colega de trabalho, me disseram. Tudo isso? reclamei.

Suspenda o trabalho, disseram. O cliente desistiu. Menos mal, suspirei. Agora posso perder tempo celebrando aquele olhar torto que recebi quando cheguei.

Você se diverte, não é? falaram. Melhor do que ultimar o projeto do míssil nuclear, avisei.

Vamos interná-lo, me avisaram, fechando a cara. Deixa antes eu descalçar os sapatos vermelhos da mais bela, disse. Todo condenado tem direito a um último pedido.

Já não é mais poesia, disseram, torcendo o nariz. Não importa, falei. O que vale é a cintura chegando perto e eu apertando até o desmaio.

Precisamos entregar aquele relatório, disseste, tirando a blusa. Assim fica difícil, falei.

Mas se estiveres rodeada de gente,cuidado na hora do grito. Ele sai sem querer, como um tornado no ermo.

Se perguntarem o que fazemos, desconverse. Fale sobre o tempo. Preveja tempestades. Diga que esqueceu teu amor, ausente.

Agora sim chegaste e te somas às mais belas. Derrubas um tapete de flores em meus poemas. Isso acaba me matando.

Não se importe com tantas abordagens. O que vale é o sentimento, mistura de piração com doses de alimento. Esse troço em vão onde nos deliciamos.

Eles jogaram fora o que recolhemos. Fomos para a sombra fazer o inventário. Os guizos do sonho são meus! gritaste.

Teu perfil visto da cama é um convite. Meu corpo te chama.

Tuas formas moldaram a vontade das minhas mãos. Sigo teu rumo, linha por linha. Em cada curva, o mel derrama.

Cobriste de flores teu vestido transparente. Vi o melhor de ti apertando os olhos.

Amarrei as mãos, vendei os olhos. Pus uma corrente em meus pés. Esperei você passar. Passou. O que complica é o perfume, que não quis seguir viagem.

Ela deixou algum recado? perguntei na portaria. Sim, disseram. Falou para você pegar de volta as flores que estão naquele canto

Existem outras coisas para escrever, me dizem. Navegue mais por lugares remotos e traga bons assuntos. Ok, eu disse. Ela costuma ir longe, mesmo.

Implicam com a palavra amor, com razão. O verdadeiro nome é encrenca.

Tens uma chance. Diga que ainda me quer, cigana.

Fugiste de mim. Voltaste tarde demais.Eu já tinha trancado a chave, no fundo do mar, todos os poemas.

Ficaste por preguiça, para não ter que dirigir à noite. Acordaste grudada em mim, em pânico.

O calor ainda nos cerca, colocando fogo em tuas rendas. O verão nos trancou no quarto por mais um tempo.
Agora vou me recolher, disse o pônei. Tolo! xingou a unicórnia.


RETORNO – Imagem destra edição: Catherine Deneuve em Belle de jour, de Buñuel

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