6 de março de 2012

MAIS RUSSOS


Nei Duclós

Insisto no tema porque a antologia que estou lendo prazerosamente de contos russos tem inúmeras revelações. A começar por diversos autores que eu desconhecia e que são importantes, como Búnin (1870-1944). No conto A Glória ele fala do fascínio que seu povo tem pelos patifes. Uma das coisas que me impressionam na realidade da Rússia da virada do século 19 para o 20 são as sintonias com o Brasil profundo. Já fiz uma resenha intitulada Tolstói no Brazilsão Tzarista. Mas não é por isso que essa literatura se impõe e sim pela qualidade dos seus narradores.

No caso do conto de Búnin, ele aborda os enganadores seguidos por multidões apenas pelo fato de exibirem um comportamento bizarro confundido com sagrado. Búnin sabia abordar o povo e era um dos escritores favoritos de um especialista nesse assunto, Máximo Gorki, tema de crônica recente aqui neste espaço. O mujique que gostava de tomar litros de chá açucarado e que nem sabia ler cartas, mas era convocado para consultas de todo o tipo; o limpador de latrinas que cantava em eventos religiosos e sociais e que vivia recebendo presentes, doces e dinheiro; o camponês que decidiu ser um pregador e saiu em andrajos e causou grande impressão ao mugir em missas e funerais; o porteiro que um dia resolveu profetizar e que causava grande veneração popular; e o homem que dava cambalhotas nas peregrinações provocando alvoroço.Todos são personagens dessa galeria impressionante.

Não lembra alguma coisa? Ligamos a televisão e lá vemos os falsos profetas a catequizar o povaréu e a cantar (só faltam as cambalhotas); os catequistas que vivem olhando para as câmaras dando conselhos fajutos de auto-ajuda; os políticos que falam em ética, democracia e direitos humanos e que são flagrados com a boca na botija. Vivemos num ambiente parecido, favorável à mistificação. Engana-se o povo com todo tipo de expediente. Nada mais atual do que esse conto de Búnin.

Em outro conto, O Grande Slam, sobre um grupo de quatro pessoas que se reuniam metodicamente para jogar cartas, de autoria de Andreiev (1871- 1919), o texto nos leva para um desfecho trágico depois de descrever uma rotina que deveria ser de lazer. Mas é apenas formalidade, vazio de vida, pessoas que ficaram próximas durante anos e não sabiam nada uma das outras, nem onde moravam. O autor descreve magistralmente as contradições do comportamento social falso, quando, por exemplo, a mulher do grupo se atrapalha e é aparentemente tolerada pelos seus parceiros de jogo. Eles fazem as honras da masculinidade para os caprichos da mulher, mas não escondem a irritação por ela ser tão desastrada.

O conto também é um toque sobre o objetivo principal do evento, que seria conseguir o grande lance, o que jamais ocorre, pois a expectativa, a ansiedade e a frustração impedem que um dos jogadores, cardíaco, chegue ao final. Conviver com o corpo inerte em cima da mesa onde se distribuíam as cartas é um detalhe sinistro deste brilhante conto de mais um autor russo, que nos deslumbra pela sua capacidade de exercer um ofício tão complicado como é a literatura.


RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagens desta edição: procissão russa, Bunin e Andreiev, pela ordem.

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