26 de outubro de 2010

PRIVILÉGIO


Nei Duclós (*)

O tempo é o privilégio da memória. O relógio de plástico, redondo, com três pequenos pés em cima do criado-mudo. Ou o de pêndulo, a tocar gravemente as horas em salas pontuadas por sofás ancestrais, onde descansam crochês, almofadas de tecido fosco, e cortinas como velas de navio. As venezianas onde chispas de luz escapavam nas tardes de verão. Tetos de pinturas desmaiadas, manchas que encardiam o olhar quando não havia mais sono. E a solidão das primaveras hostis batendo nos portais.

Depois da chuva, barcos encharcados de papel jaziam nas sarjetas, impossibilitados de continuar viagem até o pedregulho das ruas próximas, onde morava a população ribeirinha, a mesma que nos recebia com festa quando desovávamos sacos enormes de peixes, que a rede de três panos tinha colhido em excesso. Havia aqueles cinamomos, e eucaliptos mais antigos do que a infância dos avós, que jamais conheci.

É um privilégio não porque nos torna diferentes dos outros, de vivências mais curtas e talvez não tão intensas. Mas porque hoje, quando se debruçam sobre épocas e tocam objetos sem valor, temos essa ligação profunda com os detalhes da cidade tão real que evaporou conforme evoluiu a idade. Ficamos longe desse barro original, e do sopro que a emoção nos insuflou enquanto crescíamos como palmeiras ambulantes.

Nossos cabelos rebeldes soltavam tufos de espirais projetadas pela cabeça raspada a máquina zero. Arrastávamos nossas primeiras calças compridas de brim coringa e levávamos pentes de osso para aprimorarmos penteados inexistentes para nos preparar diante da proximidade, sempre remota, das gurias.

Quando me perguntam sobre o passado, disfarço. Não posso falar sobre o confortável carro Austin que tinha estribo e enorme rádio a bordo. Dos fiambres devorados nas temporadas de caça, enquanto os mais velhos miravam em perdizes que matraqueavam os segundos desesperadas. Não posso aperfeiçoar mais a maneira de falar das coisas que me fizeram como sou antes da tampa voar como panela cozinhando no fogo esquecido pelos maus elementos das pescarias.

Ela rolou lá para baixo, onde moram as piavas, que fazem zigue zague na lembrança, como os cabelos da moça ao vento, que enfim nos olha. E isso sim era o verdadeiro privilégio.


RETORNO - 1.(*)Crônica publicada nesta terça-feira, dia 26 de outubro de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: relógio suíço, de cabeceira.

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