2 de outubro de 2010

HALF MOON: A MORTE NA OUTRA METADE


Nei Duclós

“Se eu aceitasse a censura do governo, seria um funcionário, não um cineasta”, diz Bahman Ghobadi, diretor do filme Half Moon (2006), ou Meia Lua, mais um filme seu banido pelo regime de Teerã (idêntico ao "Ninguém sabe sobre os gatos Persas", já comentado aqui). Na mesma entrevista ele lamenta ter podado sua obra para tentar passar pela censura. Em vão. Perdeu seu tempo e deixou o filme com menos intensidade do que deveria. Não importa. Half Moon é um assombro de Sétima Arte.

Só a cena em que Mamo, o compositor e cantor do Curdistão banido pelo Iraque, chega na aldeia das montanhas em busca da a voz feminina para a apresentação que fará junto com os filhos, numa celebração da música perdida de sua nação, vale um século de cinema. Centenas de mulheres com seus vestidos coloridos empunham enormes tambores redondos, que vibram à passagem do mestre que veio de longe resgatar a outra metade, a que lhe falta, sem a qual não será completo. Ele então passa com a eleita pelo meio da multidão feminina, que deixa qualquer timbalada no chinelo com seu ritmo de gala. É de fazer chorar as pedras. Nada há o que se compare a esse momento cinematográfico.

A metade que falta é, dada as circunstâncias, uma representação da morte. É a garota chamada Meia Lua que o leva para o meio da neve para enfim morrer, sem ter chegado ao seu destino, que não se cumpre. Sua cultura pode acabar com ele, mas há uma chance: abraçado ao papéis onde estão registradas suas composições, ele deixa o legado para os filhos instrumentistas. Eles levarão adiante esse recado de um mundo perdido. Mamo não se conforma com o silêncio a que foi confinado e por isso grita para os vales e montanhas da estrada que não desistirá da viagem, apesar de todos as profecias ameaçadoras.

É um road movies onde todos os problemas assomam para a troupe que precisa esconder seus instrumentos musicais, pois o Irã proíbe a música, e a mulher que vai com eles, pois o Irã proíbe que mulheres se apresentem em público. Trata-se uma civilização doente (apoiada por nossa ditadura atual), que confina o som da emoção e da ancestralidade e deixa de lado exatamente a metade da humanidade, a mulher. Assim como fazemos por aqui: matamos nossos talentos na infância e se sobreviverem ficarão à margem para que a mediocridade gritante sufoque a melodia, a harmonia, a maestria e a grandeza. Somos hoje o ruído e nossa música medra nas catacumbas, enquanto os espertalhões broncos fingem que são artistas.

Ghobadi sente medo da morte, presente em sua terra (ele é curdo, da minoria massacrada), do seu país (que frauda eleições, como estamos cansados de saber) e da sua região (o ódio mútuo entre árabes e judeus). Sente-se exausto com esse medo, que transparece em sua obra, principalmente neste filme, que versa sobre a morte. O velho Mamo cospe sangue na neve enquanto é levado para seu caixão, implorando para ser levado até onde o público, em vão, o espera. Na sua viagem, ele viu como o povo o idolatra e como ele é recebido como um herói nacional por expressar a identidade perdida de uma cultura que se supera pela voz e alma de filhos ilustres.

Half Moon, filme do cineasta que luta contra os poderes opressivos onde vive, com a coragem possível e necessária, é uma lição para nós, desfalcados também de nossa outra metade: o Brasil soberano , que nos falta e nos escapa pelos dedos como areia fina do deserto.

É preciso dizer também que Half Moon é sobre cinema. Pois o filme registra o que escapa à câmara de um dos filhos de Mamo, que está descarregada. Ele tentou filmar a viagem, mas não conseguiu. Fica a obra de Ghobadi, denúncia e arte suprema, para encanto dos espectadores e esperança de que o cinema continua vivo, apesar de tudo.

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