25 de outubro de 2010

GRENAL, A GUERRA CENTENÁRIA


Nei Duclós (*)

Grenal é Grenal, ou seja, guerra. Vale tudo, desde que o adversário perca sua louca pretensão de existir. Tem hino, marcha, farda, bandeira, pólvora, bomba. Mas há uma diferença. Nesse conflito centenário que ocupa gerações de torcedores dos dois principais times gaúchos, vitória não significa armistício. E derrota jamais é rendição. Os soldados nunca abandonam o jogo, nem voltam para casa: estão sempre no front, vestidos para matar. A camiseta do time da vocação não é um ornamento, é a primeira pele. Depois vem a outra, a que sofre arranhões e contusões. No estádio, no bar, nas ruas, nos trens, o azul do Grêmio e o vermelho do Internacional sangram mais do que os ferimentos reais.

Por isso não existe Grenal amistoso, jogo que significa sempre uma decisão. No coração de cada torcedor, a verdade dói: nenhum dos dois compartilha territórios, não convive em acordos tácitos de fronteiras. Cada um tem pleno domínio dos espaços. O estádio é um só, o Olímpico gremista, ou o Gigante da Beira Rio colorado. São realidades incomensuráveis entre si. Foram construídos sob vaias. São vistos, em cada lado, como fantasias megalômanos de inimigos convencidos de que fazem parte do futebol. Neles, o que se disputa não são torneios, campeonatos, títulos, mas a prova de que os outros não passam de ficção. Não se trata, portanto, de um estado de espírito definido pela divisão, mas hegemônico em cada minuto do dia.

Essa certeza absoluta de que o time do coração é único e que na outra margem só existem lendas, não significa que as pessoas se trucidem quando se avistam, mesmo que isso possa ter acontecido às vezes nesse século de História. A guerra é no sistema de valores, no imaginário, na cultura esportiva, na argumentação eloqüente, no discurso fúnebre, na passeata ensandecida, na roda de conversa. A linguagem, pautada pela lógica transtornada, trabalha a representação da guerra.

Se você é adventício, faz parte da área nebulosa onde, parece, existem outras opções, não se aproxime de nenhum ajuntamento envolvido na insânia. Primeiro, que não será notado. Segundo, não adianta fingir, você será reprovado no primeiro teste. E terceiro, porque poderá ser visto como uma criação bizarra de um universo remoto.

CHAMAM DE PAIXÃO, DIZEM QUE É DOENÇA

Aconteceu comigo. Perdi a chance de ser colorado quando voltei de um veraneio com primos fanáticos. No primeiro instante em que tentei assumir a nova tendência, fui podado por pressão familiar: ali, e eu não sabia, eram todos gremistas. Contra a vontade, me adaptei à imposição. Mas com o tempo fui perdendo o pique, deixado para trás como nas marchas forçadas, em que os elementos mais aguerridos tomam a dianteira e somem numa nuvem de pó. Ficamos nós, abandonados no ermo onde medram os outros times, todos marginais à febre de um alistamento incompreensível.

Quem está fora, não consegue entender. Não se trata de uma alegoria, metáfora ou parábola. Nem pode ser visto como a política, “a guerra por outros meios”, segundo o velho jargão de Clausewitz. É a coisa em si. No momento em que os adversários se lançam uns contra os outros, para decidir quem restará vivo dos escombros, não pode haver dúvida sobre o que está realmente acontecendo. Não é esporte, passatempo dos fracos. É um mistério. Chamam de paixão. Dizem que é doença. Mas é algo maior. É a guerra, assumida por vocação. Não é amor ou algo parecido, mas estratégia. Nem divertimento, mas tática. Ninguém veio ao mundo a passeio. Há uma tarefa a cumprir e por isso o campo de batalha fica coalhado de bravos.

As pessoas nascem coloradas ou gremistas com pleno conhecimento do lugar que ocupam em cada batalha. Não há margem para a traição e a defecção. A desistência, a passagem para o outro lado, se é que um dia existiu, é tratada com pelotão de fuzilamento. Por isso um setorista de futebol da capital gaúcha é um correspondente de guerra. Ele conta as baixas, mais do que reporta os fatos. O que poderá fazer a crônica esportiva diante de torcedores que comemoram por cem anos um simples campeonato? Foi o que aconteceu com o Grêmio em 1935, quando disputou com o Internacional e conquistou o título de campeão do centenário da Revolução Farroupilha. Acertou-se que por cem anos haveria uma confraternização no dia 22 de setembro. Os ágapes vão se repetir até 2035 e talvez a decisão de comemorar seja prorrogada.

O Grenal Farroupilha é ideal para definir o status da guerra. Principalmente pela presença de um personagem lendário: Eurico Lara, o “craque imortal” do hino gremista composto por Lupicínio Rodrigues (que também fez o hino colorado). Lara estava em avançado estado de tuberculose, mas assim mesmo foi lá fechar o gol. Era questão de vida ou morte. Saiu coberto de glórias e dois meses depois morreu. Tenho uma ligação profunda com a memória desse jogador uruguaianense, nascido em 1897.

Ele dava nome ao estádio a um quarteirão da minha casa. Encarnava todas as histórias heróicas dos goleiros que quebravam um braço e defendiam com o outro. As saídas do estádio Eurico Lara pertencem hoje a um cânone da memória. Lembro que depois do jogo eu ficava esperando a multidão que saía do jogo envergando, em sua maioria, terno, gravata e chapéu. Era um programa de gala o futebol do domingo à tarde. Perguntava sempre o resultado para todos os que passavam e não me contentava em saber a resposta. Precisa ouvi-la repetidas vezes. Como se treinasse para firmar a lembrança do que hoje, época do desregramento da geral, parece até mentira.

Lara não queria sair do lugar onde nasceu. Mas, ao servir no Exército, acabou transferido para Porto Alegre, por obra dos cartolas. Na nossa terra, defendia as cores amarelo e preto do E.C. Uruguaiana, fundado em 1912. É consenso achar que o futebol foi introduzido no Brasil por um só caminho, o do Charles Muller. Seria engraçado achar que em poucos anos o esporte atravessasse milhares de quilômetros a partir de São Paulo até a fronteira gaúcha para gerar times ancestrais como o Uruguaiana. A verdade foi decifrada na tese "A bola nas redes e o enredo do lugar: uma geografia do futebol e de seu advento no Rio Grande do Sul", de Gilmar Mascarenhas de Jesus: os ingleses levaram o futebol via estrada de ferro de Buenos Aires e Montevidéu para as cidades sentinelas do pampa.

UM IMENSO CAMPO DE FUTEBOL

Foi assim que foi desenvolvido um outro tipo de postura futebolística, mais afeita aos rigores do clima, sem cair na tentação do determinismo geográfico. Falo do clima humano, franco e aberto dos campos sem barreiras. Pode-se dizer que o pampa é um imenso campo de futebol, exagerando na metáfora. Espaço é que nunca faltou naquelas bandas, onde nasceram grandes jogadores como Gessy Lima, bem no ano do Grenal Farroupilha. Gessy era capaz de feitos impressionante, como colocar um monte de gols no Boca Juniors em Buenos Aires, depois de uma farra por ter passado no vestibular de Odontologia. Tem veterano do jornalismo esportivo que jura não ter visto outro jogador igual, com exceção de Pelé. Gessy, que se foi em 1989, abandonou o futebol para sempre quando se formou, aos 26 anos.

Poucos anos atrás estive em Uruguaiana na época de uma decisão de campeonato. Não lembro quem venceu, mas o que me impressionou – já que há tempos não visitava minha cidade – foram as familias uniformizadas, do avô à criança de colo. Saíram para a praça para ver o adversário comemorar o título. Não houve briga, nem tiro, nem nada. A guerra não impede a civilização. Ao contrário: a tempera, com certezas herdadas que formam um conjunto de princípios. A bravura colorada ou a determinação gremista não impedem que haja nação de uma só bandeira. Lá, naquele continente onde se decidiu o tamanho do país soberano, o Grenal talvez seja o que restou de um ímpeto que inventou o país.

Por isso o Grenal é uma guerra, mas com uma diferença: é assumida por cidadãos livres, que não abrem mão de suas convicções e não matam por amor. Fazem tudo para que seu lado predomine, mas possuem persistência, qualidade dos guerreiros. Se não for nesta temporada, será na próxima. Ninguém convencerá o inimigo a desistir. Pois, se isso acontecer, acaba o jogo, é o fim da graça. O bom é continuar pelos séculos afora, como se cada decisão fosse a última e cada gol a consagração de um destino.

RETORNO -1.(*)Matéria publicada na revista Foot-Ball, do mestre Moacir Japiassu.

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