16 de junho de 2009

FRIO

Nei Duclós(*)

Inverno exige uma resposta à altura. Para quem nasceu no Brasil profundo – a fronteira entre uma civilização possível e a natureza bruta – era necessário refugiar-se nas peles dos animais. Lembro do grande couro estendido na sala, único lugar possível para brincar no chão. Ou do grande pelego de ovelha, trincheira contra as madrugadas polares batidas pelo vento. Ou ainda as campeiras, grossos casacos que cobriam costas e peitos; as meias e calças de lã, que devolviam vida a pernas e pé condenados ao congelamento; e as boinas, que tiravam os cabelos do relento.

Os grossos cobertores forravam as camas quando nos recolhíamos precocemente aí pelas nove da noite, depois das narrativas dos adultos, veteranos de guerra. Na cabeceira, um rádio salvador despejava música de todas as nações. Vivíamos na diversidade cultural. Não havia ainda o ganho de escala a qualquer custo, esse que, a exemplo das plantações de banana, produz em série o providencial baticum ou a abobrinha datada.

Existia também a margem para leituras, de preferência Monteiro Lobato, com as ilustrações inesquecíveis de Le Blanc, que nos levavam no dorso do rinoceronte para a Grécia Clássica. A insônia, rara, era povoada de histórias pessoais, inventadas entre faroestes e namoros. Não cobiçávamos estrelas de cinema, mas as beldades do burgo, esplendorosas em sua graça inatingível.

O frio era um acontecimento matinal, de geada cobrindo o campo de futebol do colégio, onde exercitávamos a ginástica sueca sob as ordens de um severo sargento do Exército. Os movimentos brutos antecediam um jogo de vale-tudo, território seletivo para futuros torneios e medalhas. Na manhã rósea e azul, ainda não ocupada pela claridade total do sol de junho, orelhas vermelhas recebiam o castigo aplicado com réguas afiadas, manipuladas por grandalhões prevalecidos.

Éramos vítimas do frio, naquela época de casacos de pele que enfeitavam as senhoras distintas. Gostávamos de abrir os armários para passar a mão no vison hoje condenado pela militância. Aquele gesto carinhoso na pele que dava charme e glória a quem a usava faz parte do acervo abandonado do frio de outros tempos. Quando éramos crianças, ou seja, bichos em plena temporada de provações, quando cultivávamos a esperança da próxima primavera.




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