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6 de junho de 2009
KAR-WAI WONG: ARTE E TRANSGRESSÃO
Nei Duclós
Acho “Amor à flor da pele” (2000), que vi hoje, assim como “Um beijo roubado” (2007), que já comentei aqui, ambos desse fenômeno que é o chinês Kar-Wai Wong, filmes de transgressão. É quando a arte transborda das formas conhecidas, ou quando usa formas conhecidas para dar um salto quântico, para fazer outra coisa. Wong trabalha a indústria cultural, ou cultura pop, ou seja o nome que se dê ao mundo visto por Andy Warhol, ou alguém parecido, com um toque pessoal. Ele submerge na tralha de luz estourada, de cores quentes, câmaras que espiam, para narrar sobre personagens que se escondem e amores que não se consumam.
Antigamente, antes que a esquerda mostrasse o que é, ou seja, antes de aparecer essa pseudo esquerda de resultados, que te obriga a votar nela te assustando com o bicho papão (real) da direita, era moda acusar alguém de “comercial”. Era no tempo em que o capitalismo não fazia parte a natureza humana. Descobrimos que faz. Hoje, comercial é um conceito precário para bater ou qualificar alguém. Wong é arte em alta voltagem e seu filme americano, o do beijo roubado, pode ser considerado uma “concessão” ao mercado, o que não me parece.
Por exemplo: Wong faz do bolerão uma referência de arte conceitual, para incorporar um amor proibido e que por isso vive de esperas e talvezes (quizás, quizás, quizas). No seu filme totalmente chinês, o do amor à flor da pele, ele virou alvo das críticas dos consumidores confortáveis, os que acham chatice tudo o que não explode ou vira tiroteio. É mortal o efeito conseguido por Wong ao fazer seus personagens ensaiarem cenas limite, como a confissão de um adultério ou a separação definitiva.
A mulher sempre dança e chora, pois leva a sério o que foi ensaiado só para evitar drama. Ela sabe que o treino é real, assim como o cinema, que é pura fantasia, é mais real do que nossas rotinas e hábitos. O casal, abandonado por seus respectivos cônjuges (que estão sempre trabalhando ou viajando) se rodeiam o tempo todo sem chegar à cama e acabam construindo um amor impossível, que se arrasta pela terra e pelo tempo como uma ferida aberta. Revisitar o lugar onde se encontraram pela primeira vez é a penitência dos quase amantes que não conseguiram driblar o cerco sinistro das convenções e dos compromissos sociais.
Parece obsoleto, mas não é. Há uma ilusão de que tudo é fácil em relação ao sexo, amor e casamento. Esquece-se que a complexidade permanece, que o ser humano é o mesmo e que os sentimentos, a razão e a carne nem sempre são datados. Vejam o caso de David Carradine, cheio de casamentos destruídos, solitário num quarto de hotel de luxo, aos 72 anos, depois de se tornar célebre primeiro como o substituto de Bruce Lee na série Kung Fu (um chinês não podia ser o astro principal de uma produção televisiva americana). E depois de ter sido “ressuscitado” pelo Quentin Tarantino. O que aconteceu com David?
Soubemos pelo site (imperdível) de Renzo Mora (link ao lado), que matou a charada em primeira mão. David estava num exercício autoerótico, que na fronteira tem um nome mais chulo (mas vamos deixar para lá). Ele se amarrou todo para ter o prazer que não encontrava ao seu redor, logo ele, estrela da TV e do cinema (o que resta para os outros?). Morreu por asfixia, num acidente provocado pela sua fantasia. Ou talvez tenha mesmo se suicidado, preferindo gozar até morrer, nunca se sabe.
É difícil, para qualquer artista, equilibrar tradição e ruptura, deixar sua marca e sair ileso. David, admirado por tanta gente, provocou sofrimento com seu gesto, involuntário ou não. Mas ele não foi submisso. Participou de rupturas importantes. A vida, que não faz graça com ninguém, exige do artista sua melhor performance, o seu vôo mais alto. Somos o que deixamos de herança. E o nosso tempo é a sobrevivência do que criamos em meio à escassez.
RETORNO - Imagem desta edição: cena de "Amor à flor da pele".
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