19 de setembro de 2003

EDIÇÃO, CORTE E COSTURA

Editar é tomar decisões, é apostar no talento e na capacidade da equipe, ouvir e ver o que cada um tem de melhor. Editar é virar vidraça, é arrostar os erros, é elogiar em público e criticar reservadamente. É estar presente na pauta e no texto final, na viagem e no plantão, no corte da matéria e na costura dos parágrafos.

GENTILEZA X BARBÁRIE - Meu primeiro chefe de reportagem dizia todos os dias: “Vai lá e vê o que tem e o que não tem”. Passava três pautas e no final de expediente me mandava para o aeroporto, onde eu era caçado por políticos medíocres que queriam plantar notas na imprensa. No fim, ele foi útil, pois com o seu “te vira, que estão pegando” aprendi a tomar decisões no front da profissão. Seu erro foi nunca elogiar (elogio é parâmetro) e no dia em que cometi minha primeira falha, fez um escândalo. No fundo, estava de tocaia. Mas não tinha motivos para tanta cobrança. As pautas eram tão ruins que às vezes eu não entendia nada. Um dia, enrolei tanto para fazer uma pergunta que a fonte me pediu a pauta por escrito que eu guardava no bolso (era uma fonte conhecida, sabia todos os macetes daquele jornal da província). Não tive dúvidas: repassei o bilhetinho de duas linhas. Aí fez-se a luz e ele me deu a entrevista. Em compensação, quando eu fazia algumas pautas (de vez em quando) na Ilustrada, minha gentil e sensível editora, Helô Machado, dizia com graça: “Deixa eu publicar tua pauta, o foca não vai fazer melhor do que isso”. Todo editor precisa ser como a Helô Machado, que dava vez para todo mundo e teve idéias perenes, como a de publicar resumos dos capítulos de telenovelas, coisa que existe até hoje (uma idéia simples, mas absolutamente inovadora, que atraiu grande quantidade de novos leitores). Ou como o Tarso de Castro, que faz falta, mais do que nunca, no atual estado de coisas.

ESTRATÉGIA – “Contar buracos de rua” era a tarefa dos focas naquela época. Hoje parece que está pior. Mais tarde, já adentrado nos anos, minha atenção foi chamada publicamente. Peguei a editora num canto e avisei: o elogio é público, a crítica é privada. Um editor importante uma vez tascou na redação: “Fulano conseguiu cravar a capa, e vocês, o que fazem?” Todo esse tipo de ruído pode ser evitado. O conflito bruto não deve ser obrigatório, como muitas vezes acontece. O poder da pequena tirania precisa ser erradicada da profissão. Jornalismo é como cinema, trabalho de todos e o gênio só se manifesta quando há ambiente favorável. Mas atenção: gentileza e elegância não significam amizade. Um editor sério peita a pressão sobre os repórteres, responde pela equipe e cobra suavemente. Editar é fazer parte da equipe e não ser seu algoz. Corre-se o risco da folga: alguém, sabendo que não vai ter sua atenção chamada em público e jamais será desrespeitado, começa a testar o editor para ver se ele é mesmo tão democrático e legal assim. Cada editor tem uma saída para esse tipo de problema. Costuma-se jogar umas pessoas contra as outras, para governar por meio da divisão. Outro diz gargalhando as coisas mais sérias, passa o recado radical como se fosse uma piada. Muita vezes a conversa séria no canto não resolve. Aí a única solução possível, principalmente para quem é da fronteira, é chamar o Cabo Adão. O Cabo Adão resolve.

AGULHA E LINHA – Minha especialidade é a edição de texto. Houve época em que participei da paranóia da Abril, de reescrever absolutamente tudo, perseguir o chamado texto redondinho. Quem passou por lá sabe. A Abril conseguiu uma excelência de texto por um tempo, mas o paradigma acabou gerando muita redundância. Uma pobre reportagem passar pela máquina de moer carne de quatro editores é pedir para abrir um boteco em Caxambu. Prefiro trabalhar com o estilo de cada repórter, repassando regras básicas: desentrolhar o fluxo do texto, abrir com algo realmente importante para justificar a matéria, finalizar cada parágrafo dando gancho para o parágrafo seguinte, para que se evite assim o fórceps de “na verdade” ou “por outro lado”, escrever o fecho como parte integrante do texto e não seu apêndice. Peço para reescrever quando necessário, parte da matéria ou toda. Normalmente, o problema está na concepção do tema, na seleção do enfoque, na incompreensível obrigação de fazer suíte de tudo. A praga da suíte, aquela continuação da matéria anterior, precisa acabar. Se as pessoas lêem sempre os veículos, não é necessário redundar na informação. Hoje vejo os jornais se repetindo sem parar, como se o mundo começasse do zero a cada dia.

RETORNO - Como quase ninguém me chama de mestre, certamente porque mestre não sou, sempre é bom ser tratado assim por uma jornalista como a Luciana Félix, que trabalhou comigo por dois anos na Fiesp, fazendo reportagens diárias e cravando capa da revista quando ainda nem tinha se formado na faculdade. Como ela é muito jovem, não digo que o mérito é de quem sabe ouvir e tem talento e vontade para redirecionar seus rumos. O veterano é apenas um distribuidor de positivos, que conta com a sorte. É gratificante descobrir que a linhagem do jornalismo pátrio de qualidade independe de geração e que em cada uma existem pessoas escolhidas. Quando falam mal da juventude brasileira para mim, lembro nossa geração: as exceções sofriam num mar de mediocridades. Acho até que hoje existe material humano muito mais farto. O que falta é oportunidade.

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